Foi em Calais que nos encontramos alguns anos atrás.

– De fato. E agora nunca mais tornará a me ver – retrucou o francês, ao ouvir um som estranho, como um chacoalhar de ossos. – O que foi isso?

– Ratos explorando seu esqueleto – respondeu Kane, observando o bandido como um falcão, esperando por uma única hesitação da boca negra daquela arma.

– Já basta – devolveu o outro. – Agora, m’sieu Kane, sei que leva consigo uma quantidade considerável de dinheiro. Cheguei a pensar em matá-lo durante o sono, mas a oportunidade se apresentou e decidi aproveitá-la. Você é fácil de ser enganado.

– Não achei que devesse temer um homem com o qual partilhei meu pão – disse Kane, com um timbre profundo de lenta fúria ribombando em sua voz. O bandido deu uma gargalhada cínica. Apertou seus olhos ao mesmo tempo em que recuava lentamente em direção à porta de saída do quarto. Os tendões de Kane se retesaram involuntariamente; ele se recompôs como um lobo gigantesco prestes a se lançar em um salto de morte, mas a mão de Gaston era como uma rocha, e sua pistola não estremeceu em momento algum.

– Não teremos mergulhos para a morte depois do tiro – alertou Gaston. – Fique parado, m’sieu; já vi homens serem mortos por moribundos e desejo manter uma distância suficiente entre nós para evitar essa possibilidade. Juro que vou atirar; você irá atacar e rugir, mas morrerá antes que consiga me atingir com suas mãos nuas. E o estalajadeiro terá outro esqueleto no seu nicho secreto. Isto é, se eu mesmo não matá-lo também. Além do mais, o tolo não me conhece, e nem eu a ele...

Na soleira da porta, o francês mirava Kane pelo cano da pistola. A vela, ainda enfiada em uma cavidade na parede, derramava uma luz estranha e trêmula que não chegava ao corredor. A abrupta morte veio das trevas, atrás das costas de Gaston, na forma de um gancho pontiagudo e reluzente como um raio. O francês caiu de joelhos como um touro abatido; seu cérebro vazando de dentro do crânio rachado. Diante dele, erguia-se a figura do estalajadeiro, um espetáculo selvagem e terrível, ainda segurando a arma sangrenta usada para assassinar o bandido.

– Ho! Ho! – ele rugiu. – Para trás!

Kane havia se projetado para a frente quando Gaston caiu, mas o estalajadeiro apontou para seu rosto a longa pistola que trazia na mão esquerda.

– Para trás! – ele repetiu em um rugido de tigre, e Kane se afastou da arma de fogo e da insanidade naqueles olhos vermelhos.

O inglês ficou em silêncio, com a carne crepitando, sentindo uma ameaça mais profunda e hedionda do que o francês representava. Havia algo de inumano naquele homem, que oscilava de um lado para o outro como uma grande fera da floresta, enquanto suas gargalhadas sem emoção ressoavam mais uma vez.

– Gaston, o Carniceiro! – ele gritou, chutando o cadáver aos seus pés. – Ho! Ho! O belo salteador não tornará a caçar! Havia escutado dizer que este tolo vagava pela Floresta Negra... Ele queria ouro, mas encontrou a morte! Agora, seu ouro será meu; e mais do que o ouro: a vingança!

– Não sou seu inimigo – Kane falou calmamente.

– Todos os homens são meus inimigos! Veja as marcas nos meus punhos! Veja as marcas nos meus tornozelos! E no meio das minhas costas, o beijo do açoite! E no fundo do meu cérebro, as feridas dos anos que passei em celas frias e silenciosas, punido por um crime que não cometi!

A voz quebrou-se em um soluço grotesco e hediondo. Kane não respondeu, percebendo que aquele não era o primeiro homem cujo cérebro fora despedaçado pelos horrores das terríveis prisões continentais.

– Mas eu fugi! – o grito ergueu-se em triunfo. – E aqui faço guerra contra todos os homens... O que foi isso?

Foi um lampejo de medo que Kane viu naqueles olhos medonhos?

– Meu feiticeiro está chacoalhando os ossos! – sussurrou o estalajadeiro, e depois riu de forma frenética. – Ao morrer, ele jurou que seus próprios ossos teceriam uma teia de morte para mim. Por isso, algemei seu cadáver ao chão. Mas, nas profundezas da noite, sempre escuto seu esqueleto descarnado se debater e balançar, como agora, tentando se libertar. E eu rio, e rio! Ho! Ho! Mas sei o tanto que ele anseia erguer-se e ficar à espreita, como o antigo Rei Morte, vindo por estes corredores escuros, para, quando eu dormir, assassinar-me em minha própria cama!

De súbito, os olhos insanos brilharam horrivelmente:

– Você esteve na câmara secreta, juntamente com este tolo morto! O feiticeiro falou com vocês?

Kane estremeceu. Seria loucura ou ele realmente escutara um leve chacoalhar de ossos, como um esqueleto em movimento? O puritano encolheu os ombros; os ratos roeriam até mesmo os ossos poeirentos.

O estalajadeiro ria novamente.