Esgueirou-se em volta de Kane, mantendo todo o tempo o inglês sob a mira da pistola, e com a mão livre abriu a câmara secreta. Tudo era sordidez lá dentro, e Kane nem sequer conseguia ver o reluzir dos ossos no chão.

– Todos os homens são meus inimigos! – murmurou o estalajadeiro, à maneira incoerente dos loucos – Por que haveria eu de poupar algum? Quem levantou a mão para me ajudar quando fiquei durante anos aprisionado nas masmorras de Karlsruhe? E por algo jamais provado... Alguma coisa aconteceu ao meu cérebro, então. Como um lobo, tornei-me irmão da Floresta Negra, para onde fugi quando escapei da prisão.Os hóspedes que vieram aqui se banquetearam com a carne de todos os seus irmãos mortos. De todos, exceto de um: desse que agora balança os ossos, esse mago da Rússia. Para impedir que ele retornasse das sombras negras quando a noite cai sobre o mundo para me assassinar, e uma vez que não se pode matar os mortos, eu descarnei seus ossos e o acorrentei. Sua feitiçaria não foi poderosa o bastante para salvá-lo de mim, mas todos os homens sabem que um mago morto é mais terrível do que um vivo. Não se mova, inglês! Hei de deixar seus ossos nessa câmara secreta, ao lado destes, para...

O maníaco, sob o batente da câmara secreta, ainda apontava sua arma de forma ameaçadora para Kane, quando, de repente, foi derrubado para trás e sumiu dentro da escuridão. No mesmo instante, uma rajada errante de vento bateu a porta atrás dele. A vela na parede tremulou e se apagou.

As mãos de Kane, varrendo o chão, encontraram uma pistola, e ele se levantou, tocando a porta por onde o maníaco desaparecera. Em pé, na mais profunda treva, sentiu o sangue congelar ao ouvir um grito hediondo e abafado que partiu da câmara secreta, entrecortado pelo chacoalhar seco e sinistro de ossos descarnados. Então, o silêncio caiu.

Kane encontrou a pederneira e acendeu a vela. Depois, de pistola na mão, abriu a porta secreta.

– Deus do céu! – ele murmurou, sentindo suor gelado empapar seu corpo. – Essa coisa está além da razão, mas é o que vejo com meus próprios olhos! Duas promessas foram aqui cumpridas. Gaston, o Carniceiro, jurou que, mesmo após a morte, se vingaria do seu assassino, e foi a sua mão que libertou este monstro sem carne. E ele...

O estalajadeiro do Crânio Rachado, que jazia sem vida no chão da câmara secreta, tinha seu rosto bestial marcado por uma expressão de terrível pavor; e afundado profundamente em seu pescoço quebrado, estavam os dedos do esqueleto do feiticeiro.

cap04

1. Um homem vem procurando

O sábio sabe quais coisas perversas

São escritas no céu;

Eles avivam olhos tristes, tocam cordas tristes

Escutando pesadas asas púrpuras,

Onde os reis Serafins esquecidos

Ainda planejam como Deus deve morrer.

– Chesterton

Uma grande sombra negra deitou-se sobre a Terra, contrapondo-se à chama vermelha do pôr do sol. Para o homem que se movia penosamente pela trilha da selva, o ocaso assomava-se como um símbolo de morte e horror, uma ameaça terrível que surgia como a sombra de um assassino furtivo, que saltava de cima de algum muro iluminado por uma bugia.

Contudo, era apenas a sombra do grande penhasco que se erguia à sua frente, cujo posto avançado do sinistro sopé era seu objetivo. Ele parou por um momento e olhou para o alto, vendo algo ser delineado em contornos negros pelo sol moribundo. Usando a mão para proteger os olhos, ele poderia jurar ter visto um movimento no topo, mas o brilho cegante o impedia de ter certeza. Seria um homem que buscava se esconder? Um homem ou...?

Ele encolheu os ombros e agachou-se para examinar a trilha acidentada que levava ao topo do penhasco. À primeira vista, parecia que apenas uma cabra montanhesa poderia escalá-la, mas uma análise mais cuidadosa revelou inúmeros apoios para dedos perfurados na rocha sólida. Seria uma tarefa que colocaria suas forças à provação máxima, mas ele não tinha viajado 1 600 quilômetros para retornar agora.

Largou a grande bolsa que trazia no ombro e assentiu o mosquete grosseiro, guardando apenas o longo florete, a adaga e uma de suas pistolas, prendendo-a às costas. Sem olhar para o caminho de onde viera, começou a longa subida.

Era um homem alto, de braços longos e músculos poderosos; entretanto, mesmo ele era repetidamente obrigado a fazer pausas em sua subida e descansar por um momento, agarrado como uma formiga à face íngreme do penhasco. A noite caiu com rapidez, e o rochedo acima era um borrão de sombras, forçando-o a tatear às cegas em busca dos buracos que lhe serviam como precária escada.

Abaixo, irrompiam os ruídos noturnos da selva tropical, embora lhe parecesse que até mesmo aqueles sons eram subjugados e silenciados pelas grandes montanhas negras, as quais, pairando acima, lançavam um feitiço de silêncio e de medo também sobre as criaturas da selva.

Para o alto, ele seguiu em seu esforço; mas, para tornar seu caminho ainda mais duro, havia uma protuberância bem próxima ao cume do penhasco, e a tensão sobre os nervos e músculos tornou-se aflitiva. Uma vez ou outra ele escorregou, escapando de cair por um fio. Em perfeita coordenação com cada fibra de seu corpo esguio, seus dedos eram como garras de aço com a pegada de um torno. O progresso tornou-se cada vez mais lento, mas ele seguiu adiante, até ver, por fim, o cume que dividia as estrelas a meros vinte metros acima de sua cabeça.

Enquanto olhava, um volume pendeu da borda, deslocando uma grande rajada de ar à sua volta. Arrepiado, ele abraçou a face do penhasco e sentiu um sopro forte em seu ombro. Apenas um sopro de raspão.