Não diga nada. Eu ajudo você, você ajuda eu, ahn?
– Por que você me ajudaria? – Kane perguntou desconfiado.
O homem se aproximou ainda mais e sussurrou:
– O braço direito de homem branco, Songa. Mais poderoso que N’Longa, Songa é. Homem branco poderoso ju-ju! Irmão branco de N’Longa mata homem-com-olhos-de-leopardo, e ser irmão de sangue de N’Longa. Então, N’Longa mais poderoso que Songa; conversa encerrada.
E, como um fantasma crepuscular, ele flutuou para fora da cabana tão rapidamente que deixou Kane em dúvida se tudo não teria sido um sonho.
Sozinho, Kane observou as chamas da fogueira. Os tambores ainda ribombavam, mas, àquela distância, os tons se misturavam e se fundiam, enquanto as vibrações produzidas se perdiam. Tudo parecia um clamor bárbaro sem rima nem propósito; contudo, ainda estava presente um tom subjacente de escárnio e de selvagem regozijo. “Mentiras”, pensou Kane, com sua mente ainda mareada. “A selva mente como as mulheres da selva que atraem o homem para a sua perdição.”
Dois guerreiros adentraram a cabana – gigantes negros com pinturas horríveis, portando lanças primitivas. Ergueram o homem branco e, após carregá-lo para fora, seguiram com ele ao longo de um espaço aberto, recostando-o ereto contra um poste, onde o amarraram. Em torno desse poste havia um grande semicírculo de faces negras, que surgiam e desapareciam ante a luz crepitante das chamas da fogueira que saltitavam em fagulhas. Diante de Kane, ali amarrado, avultava uma silhueta hedionda e obscena, escura e disforme; uma grotesca paródia de um ser humano. Parada, meditativa e manchada de sangue, como a alma disforme da África, ali estava o horror: o Deus Negro.
Ao olhar para o lado, Kane viu dois homens sentados em tronos rústicos de madeira. O da direita era um negro enorme, deselegante, uma massa gigantesca e desagradável de pele e músculos. Olhos pequenos como os de um suíno piscavam acima das bochechas marcadas pelo pecado, pressionando os lábios grossos e vermelhos em arrogância carnal. O outro...
– Ah, monsieur, encontramo-nos novamente – o falante estava longe de ser o vilão debochado que havia insultado Kane na caverna entre as montanhas. Suas roupas eram farrapos, e as marcas em seu rosto mostravam que ele havia decaído bastante nos anos que se passaram. Contudo, seus olhos ainda brilhavam e dançavam com a imprudência de outrora, e sua voz mantinha o mesmo timbre.
– Da última vez que escutei essa voz amaldiçoada – Kane falou calmamente –, foi em uma caverna, nas trevas, quando você fugiu como um rato.
– Sim, sob condições diferentes – respondeu Le Loup imperturbável. – O que você fez após tropeçar que nem um elefante na escuridão?
Kane hesitou antes de dizer:
– Eu deixei a montanha...
– Pela entrada da caverna? Sim, eu devia saber que você era estúpido demais para encontrar a passagem secreta. Com todos os demônios, se tivesse empurrado a arca com a alavanca dourada incrustada na parede a porta teria se aberto e revelado a passagem por onde saí.
– Segui seus rastros até o cais mais próximo, e lá peguei um navio para a Itália, onde descobri que você desapareceu.
– Sim, por todos os santos, você quase me encurralou em Florença – Le Loup gargalhou. – Desci por uma janela dos fundos, enquanto monsieur Galahad entrava pela porta da frente da taverna, logo abaixo de mim. E se não tivesse aleijado seu cavalo, você teria me alcançado na estrada para Roma. Mais uma vez, quando o navio em que zarpei para a Espanha mal havia saído, monsieur Galahad chegou ao cais. Por que me seguiu dessa maneira? Eu não entendo.
– Porque você é um vilão que estou destinado a matar – respondeu Kane friamente. Ele mesmo não entendia. Por toda sua vida, rodara o mundo auxiliando os fracos e lutando contra opressores, sem saber ou questionar o motivo. Aquela era sua obsessão, sua força motora vital. Crueldade e tirania contra os fracos faziam com que uma fúria ardente perdurasse em sua alma. Quando as chamas plenas de seu ódio eram despertadas e alforriadas, não havia descanso para ele até que sua vingança fosse totalmente cumprida. Sempre que pensava no assunto, considerava-se um instrumento do julgamento de Deus, um receptáculo da grande ira a ser esvaziado sobre as almas dos impuros.
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