Enfim, transpondo o Inferno e o Purgatório, Dante
Chegara à extrema luz, pela mão de Beatriz:
Triste no sumo bem, triste no excelso instante,
O poeta compreendera o mal de ser feliz.
Saudoso, ao ígneo horror do báratro distante,
Ao vórtice tartáreo o olhar volvendo, quis
Regressar à geena, onde a turba ululante
Nos torvelins raivando arde na chama ultriz:
E fatigou-o a paz do esplendor soberano;
Dos réprobos lembrando a irrevogável sorte,
A estância abominou do perpétuo prazer;
Porque no coração, cheio de amor humano,
Sentiu que toda a Vida, até depois da morte,
Só tem uma razão e um gozo só: sofrer!
Beethoven Surdo
Surdo, na universal indiferença, um dia,
Beethoven, levantando um desvairado apelo,
Sentiu a terra e o mar num mudo pesadelo...
E o seu mundo interior cantava e restrugia.
Torvo o gesto, perdido o olhar, hirto o cabelo,
Viu, sobre a orquestração que no seu crânio havia,
Os astros em torpor na imensidade fria,
O ar e os ventos sem voz, a natureza em gelo.
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Era o nada, a eversão do caos no cataclismo,
A síncope do som no páramo profundo,
O Silêncio, a algidez, o vácuo, o horror no abismo...
E Beethoven, no seu supremo desconforto,
Velho e podre, caiu, como um deus moribundo,
Lançando a maldição sobre o universo morto!
Milton Cego
Desvendava-se ao cego o mistério:
(As idades
Sem princípio; de sol a sol, de terra a terra,
A eterna combustão que maravilha e aterra,
Geradora de bens e de ferocidades;
Cordilheiras de espanto e esplendor, serra a serra,
De infinito a infinito; asas em tempestades,
Tronos, Dominações, Virtudes, Potestades,
Luz contra luz, furor de chama e glória em guerra;
E os rebeldes, rodando em rugidoras vagas;
E o Éden, e a tentação, e, entre o opróbrio e a alegria,
O amor florindo ao pé da amaldiçoada porta;
E o Homem em susto, o céu em ira, o inferno em pragas;
E, imperturbável, Deus, na sua glória!...)
Ardia
O poema universal numa retina morta.
Miguel Ângelo Velho
"Vieram-lhe o amor e a poesia, no
declínio da vida. Na mocidade, foi
de costumes austeros. Aos cinqüenta
e um anos, conheceu Vittoria Colonna;
escreveu para ela canções, sonetos,
madrigais, exaltação do cérebro,
temperada de misticismo; ela admirou-o, mas não o amou. Quando Víttoria
morreu, Buonarrotti beijou a mão do
cadáver, não ousando beijar-lhe a fronte."
(M. MONNIER - La Renaíssance.)
E pensava: — "Perder a chama peregrina,
Que extrai da pedra um Deus, do barro imundo um Santo;
E este punho, que alçou a cúpula divina
De São Pedro, e amassou "Moisés" de luz e espanto;
E esta alma, que arquiteta os mundos na oficina:
O "Dia", força e graça, e a "Noite", sombra e encanto,
E o "Juízo Final" da Capela Sixtina
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E "Judit", flor de sangue, e "Pietà", flor de pranto;
Tudo: tinta, pincel, escopro, camartelo,
Ouro, fama, poder, glória, gênio, virtude,
- Por um milagre só, no amor que me abandona:
Morrer, e renascer ardente, moço, belo,
E, como o meu "Davi", clarão de juventude,
Aparecer, sorrindo, a Vittoria Colonna!"
No Tronco de Goa
Camões sofre, na infâmia da clausura,
Pária sem honra, náufrago sem nome;
E rala, na saudade que o consome,
O pobre peito contra a pedra dura.
O seu gênio ilumina a abjeta lura...
Mas a vida das carnes se lhe some:
Míngua de pão, e, outra mais negra fome,
Indigência de beijos e ventura.
Do próprio fel, dos íntimos venenos,
Faz a glória da pátria e a luz da raça;
E chora, na ignomínia. Mas, ao menos,
Possui, na mesquinhez da terra crassa
E na vergonha de homens tão pequenos,
O orgulho de ser grande na desgraça.
EDIPO
I
A Pítia
"Repetiu-me Apolo o vaticínio: que eu
seria o assassino de meu pai; e rei; e
marido de minha mãe, sem a conhecer;
e tronco de uma prole infame!..."
(SÓFOCLES — Édipo Rei.)
Em Delfos. Com pavor, de pé, no ádito escuro,
Édipo escuta... O deus, rugindo de ira e ameaça,
Pela boca da Pítia em êxtase, devassa
O tempo, e o arcano véu destrama do futuro:
"Rolarás do fastígio à ignomínia e à desgraça!
Rompendo de um mistério o impenetrável muro,
Num sólio ensangüentado e num tálamo impuro
Gerarás, parricida, a mais odiosa raça!"
É a Esfinge, a glória, o reino, o assassínio de Laio,
E o amor sinistro... Assim troveja a voz de Apolo
E enche o sacrário... O céu carrega-se de bruma;
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Fuzila; estruge o chão; reboa no antro o raio...
E, enquanto Édipo tomba inânime no solo,
Sobre a trípode a Pítia, em baba, ulula e escuma.
II
A Esfinge
"Bem-vindo sejas à cidade de Cadmo,
nosso libertador e nosso rei, que, com
a tua penetração de espírito e o auxílio
divino, levantaste o tributo de sangue
que pagávamos à cruel Esfinge!"
(SÓFOCES — Édipo Rei.)
Perto de Tebas, junto a um monte, sobre o Ismeno,
Águia e mulher, serpente e abutre, deusa e harpia,
Tapando a estrada, à espera, — aterrava e sorria
O monstro sedutor, horrível e sereno:
"Devoro-te, ou decifra!" Era fascínio o aceno;
A voz, morna e sensual, tinha afeto e ironia,
Graça e repulsa; e a luz dos olhos escorria
Fluido filtro, estilando um pérfido veneno.
Mas Édipo desvenda o enigma... Ruge em fúria
O Grifo, e escarva o chão, bate contra o rochedo,
Rola em vascas, em sangue ardente a areia tinge,
E fita o campeador no uivar da extrema injúria.
E o Herói recua, vendo, entre esperança e medo,
Rancor e compaixão no verde olhar da Esfinge.
III
Jocasta
"Trevas espessas! eterna, horrível noite!
sou dilacerado pelo espinho da dor e
pela memória dos meus crimes!"
(SÓFOCLES — Édipo Rei.)
Édipo vê cumprir-se o oráculo funesto:
Tebas entregue, em luto, à peste que a devasta,
E, sobre o trono em sânie e o leito desonesto,
Morta, infâmia da terra e asco de céu, Jocasta.
Louco, vociferando, erguendo a grita e o gesto
Contra os deuses, mordendo a poeira em que se arrasta,
O mísero, medindo o parricídio e o incesto,
Quer da vista apagar a lembrança nefasta:
Os dois olhos, às mãos, das órbitas arranca
Em sangue borbotando, em lágrimas fervendo,
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Para o pavor matar na esmagada retina...
Mas, cego embora, — vê Jocasta hedionda, branca,
Enforcada, a oscilar, como um pêndulo horrendo,
Compassando, fatal, a maldição divina.
IV
Antígona
"Disse-me também o oráculo que
morrerei aqui, quando tremer a
terra, quando o trovão rolar,
quando o espaço brilhar..."
(SÓFOCLES - Édipo em Colona)
A terra treme. Rola o trovão.
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