Mas Orfeu, fiel ao amor de

Eurídice, encarcerada no Averno, repeliu

o amor de todas as outras mulheres.

E estas, despeitadas, esquartejaram-no."

Houve gemidos no Ebro e no arvoredo,

Horror nas feras, pranto no rochedo;

E fugiras as Mênadas, de medo,

Espantadas da própria maldição.

Luz da Grécia, pontífice de Apolo,

Orfeu, despedaçada a lira ao colo,

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A carne rota ensangüentando o solo,

Tombou... E abriu-se em músicas o chão...

A boca ansiosa em nome disse, um grito,

Rolando em beijos pelo nome dito;

"Eurídice", e expirou... Assim Orfeu,

No último canto, no supremo brado,

Pelo ódio das mulheres trucidado,

Chorando o amor de uma mulher, morreu...

Gioconda

Deu-te o grande Leonardo ao sorriso a ironia,

Insídia, e eterno ardil, na luminosa teia:

Tal, a Belerofonte a Quimera sorria,

E a Esfinge de Gizé sorri na adusta areia...

A cilada do amor, o embuste da utopia,

O desejo, que abrasa, e a esperança, que enleia,

Chispam na tua boca impenetrável, fria...

Seduzes, através dos séculos, sereia!

Esse leve clarão no teu lábio, indeciso,

É a dobrez ancestral, a malícia primeva

Da Ísis, da pecadora altriz do Paraíso:

Porque, para extrair as gerações da treva,

A serpe, e a Adão, e a Deus, com o teu mesmo sorriso,

Sorria, astuta e forte, a mãe das raças, Eva.

Natal

No ermo agreste, da noite e do presepe, um hino

De esperança pressaga enchia o céu, com o vento...

As árvores: "Serás o sol e o orvalho!" E o armento:

"Terás a glória!" E o luar: "Vencerás o destino!"

E o pão: "Darás o pão da terra e o pão divino!"

E a água: "Trarás alívio ao mártir e ao sedento!"

E a palha: "Dobrarás a cerviz do opulento!"

E o tecto: "Elevarás do opróbrio o pequenino!"

E os reis: "Rei, no teu reino, entrarás entre palmas!"

E os pastores: "Pastor, chamarás os eleitos!"

E a estrela: "Brilharás, como Deus, sobre as almas!"

Muda e humilde, porém, Maria, como escrava,

Tinha os olhos na terra em lágrimas desfeitos;

Sendo pobre, temia; e, sendo mãe, chorava.

Aos Meus Amigos de São Paulo

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Se amo, padeço, e sonho, a recompensa

É a melhor que me dais, neste agasalho:

Desta ternura, sobre mim suspensa,

Desce todo o valor do quanto valho.

Não tenho aroma que vos não pertença:

Vêm de vós a doçura e o bem que espalho;

Valemos todos pela nossa crença,

Na comunhão do amor e do trabalho.

Operário modesto, abelha pobre,

De vós e para vós o mel fabrico,

E abençôo a colmeia que nos cobre.

Só do labor geral me glorifico:

Por ser da minha terra é que sou nobre,

Por ser da minha gente é que sou rico.

A um Poeta

Longe do estéril turbilhão da rua,

Beneditino, escreve! No aconchego

Do claustro, na paciência e no sossego,

Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego

Do esforço; e a trama viva se construa

De tal modo, que a imagem fique nua,

Rica mas sóbria, como um templo grego.

Não se mostre na fábrica o suplício

Do mestre. E, natural, o efeito agrade,

Sem lembrar os andaimes do edifício:

Porque a Beleza, gêmea da Verdade,

Arte pura, inimiga do artifício,

E a força e a graça na simplicidade.

Vila Rica

O ouro fulvo do ocaso as velhas casas cobre;

Sangram, em laivos de ouro, as minas, que ambição

Na torturada entranha abriu da terra nobre:

E cada cicatriz brilha como um brasão.

O ângelus plange ao longe em doloroso dobre,

O último ouro do sol morre na cerração.

E, austero, amortalhando a urbe gloriosa e pobre,

O crepúsculo cai como uma extrema-unção.

Agora, para além do cerro, o céu parece

Feito de um ouro ancião que o tempo enegreceu...

A neblina, roçando o chão, cicia, em prece,

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Como uma procissão espectral que se move...

Dobra o sino... Soluça um verso de Dirceu...

Sobre a triste Ouro Preto o ouro dos astros chove.

New York

Resplandeces e ris, ardes e tumultuas;

Na escalada do céu, galgando em fúria o espaço,

Sobem do teu tear de praças e de ruas

Atlas de ferro, Anteus de pedra e Brontes de aço.

Gloriosa! Prometeu revive em teu regaço,

Delira no teu gênio, enche as artérias tuas,

E combure-te a entranha arfante de cansaço,

Na incessante criação de assombros em que estuas.

Mas, com as tuas Babéis, debalde o céu recortas,

E pesas sobre o mar, quando o teu vulto assoma,

Como a recordação da Tebas de cem portas:

Falta-te o Tempo, — o vago, o religioso aroma

Que se respira no ar de Lutécia e de Roma,

Sempre moço perfume ancião de idades mortas...

Último Carnaval

Íncola de Suburra ou de Sibarís,

Nasceste em saturnal; viveste, estulto,

Na folia das feiras, no tumulto

Dos caravançarás e dos bazares;

Morreste, em plena orgia, entre os esgares

Dos arlequins, no delirante culto;

E a saudade terás, depois sepulto,

Herói folião, dos carnavais hílares...