Talvez, quem sabe? a cova, que te esconda,
Uma noite, entre fogos-fátuos, se abra,
Como uma boca escancarada em risos:
E saltarás, pinchando, numa ronda
De espectros aos tantãs, dança macabra
De esqueletos e lêmures aos guizos.
Fogo-Fátuo
Cabelos brancos! Dai-me, enfim, a calma
A esta tortura de homem e de artista:
Desdém pelo que encerra a minha palma,
E ambição pelo mais que não exista;
Esta febre, que o espírito me encalma
E logo me enregela; esta conquista
De idéias, ao nascer, morrendo na alma,
De mundos, ao raiar, murchando à vista:
Esta melancolia sem remédio,
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Saudade sem razão, louca esperança
Ardendo em choros e findando em tédio;
Esta ansiedade absurda, esta corrida
Para fugir o que o meu sonho alcança,
Para querer o que não há na vida!
Inocência
Como, em vez de uma paz desiludida,
Posso eu ter, nesta idade, esta confiança,
Que me leva a correr a toda brida
Na pista de uma sombra de esperança?
Esta velhice ingênua me intimida:
Tanto ardor, tanta fé, que me não cansa,
E, em mais de meio século de vida,
Tanta credulidade de criança!
Rio, inocente, ao sol, como uma rosa;
Ainda arquiteto mundos sobre a areia;
Anoiteço em miragem luminosa.
E ainda imagino a minha taça cheia,
E emborco-a: "Oh! Vida!..."; e quero-a, e acho-a formosa,
Como se não soubesse quanto é feia!
Remorso
Às vezes, uma dor me desespera...
Nestas ânsias e dúvidas em que ando,
Cismo e padeço, neste outono, quando
Calculo o que perdi na primavera.
Versos e amores sufoquei calando,
Sem os gozar numa explosão sincera...
Ah! mais cem vidas! com que ardor quisera
Mais viver, mais penar e amar cantando!
Sinto o que esperdicei na juventude;
Choro, neste começo de velhice,
Mártir da hipocrisia ou da virtude,
Os beijos que não tive por tolice,
Por timidez o que sofrer não pude,
E por pudor os versos que não disse!
Milagre
Depois de tantos anos, frente a frente,
Um encontro... O fantasma do meu sonho!
E, de cabelos brancos, mudamente,
Quedamos frios, num olhar tristonho.
Velhos!... Mas, quando, ansioso, de repente,
Nas suas mãos as minhas palmas ponho,
Ressurge a nossa primavera ardente,
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Na terra em bênçãos, sob um sol risonho:
Felizes, num prestígio, estremecemos;
Deliramos, na luz que nos invade
Dos redivivos êxtases supremos;
E fulgimos, volvendo à mocidade,
Aureolados dos beijos que tivemos,
No divino milagre da saudade.
A Cilada
O perfume, o silêncio, a sombra... Os ninhos
Emudecem... E temos, sonhadores,
A humildade das ervas nos caminhos
E uma inocência de anjos entre as flores.
Mas há na tarde morna ignotos vinhos,
Secretos filtros, pérfidos vapores,
Amavios, feitiços e carinhos
Moles, quebrados e perturbadores...
E, de repente, o incêndio dos sentidos:
As mãos frias tateando na ansiedade,
As bocas que se buscam num queixume,
E o corpo, o sangue, o espírito perdidos,
E a febre, e os beijos... e a cumplicidade
Da sombra, do silêncio, do perfume...
Perfeição
Nunca entrarei jamais o teu recinto:
Na sedução e no fulgor que exalas,
Ficas vedada, num radiante cinto
De riquezas, de gozos e de galas.
Amo-te, cobiçando-te... —. E, faminto,
Adivinho o esplendor das tuas salas,
E todo o aroma dos teus parques sinto,
E ouço a música e o sonho em que te embalas.
Eternamente ao meu olhar pompeias,
E olho-te em vão, maravilhosa e bela,
Adarvada de altíssimas ameias.
E à noite, à luz dos astros, a horas mortas,
Rondo-te, e arquejo, e choro, ó cidadela!
Como um bárbaro uivando às tuas portas!
Messídoro
Por que chorar? Exulta, satisfeita!
És, quando a mocidade te abandona,
Mais que bela mulher, mulher perfeita,
Do completo fulgor senhora e dona.
As derradeiras messes aproveita,
E goza! A antevelhice é uma Pomona,
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Que, se esmerando na final colheita
Dos frutos áureos, a paixão sazona.
Ama! e frui o delírio, a febre, o ciúme,
E todo o amor! E morre como um dia
Em fogo, como um dia que resume
Toda a vida, em anseios, em poesia,
Em glória, em luz, em música, em perfume,
Em beijos, numa esplêndida agonia!
Samaritana
Numa volta de estrada, em sede insana,
Vi-te. Ao lado, a frescura da cisterna.
E tinhas a expressão piedosa e terna,
Como na Bíblia, da Samaritana.
Deste-me de beber. Mas quanto engana,
Às vezes, a piedade, e a esmola inferna!
Deste-me de beber da fonte eterna,
De onde a torrente dos remorsos mana.
Com a água que me deste (que contraste
De ti para a mulher de Samaria!)
A boca e o coração me envenenaste:
Maior do que o da sede, este tormento,
Esta ânsia singular, esta agonia
Que é de saudade e de arrependimento!
Um Beijo
Foste o beijo melhor da minha vida,
Ou talvez o pior... Glória e tormento,
Contigo à luz subi do firmamento,
Contigo fui pela infernal descida!
Morreste, e o meu desejo não te olvida:
Queimas-me o sangue, enches-me o pensamento,
E do teu gosto amargo me alimento,
E rolo-te na boca malferida.
Beijo extremo, meu prêmio e meu castigo,
Batismo e extrema-unção, naquele instante
Por que, feliz, eu não morri contigo?
Sinto-te o ardor, e o crepitar te escuto,
Beijo divino! e anseio, delirante,
Na perpétua saudade de um minuto...
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