Ao lado, a frescura da cisterna.

E tinhas a expressão piedosa e terna,

Como na Bíblia, da Samaritana.

Deste-me de beber. Mas quanto engana,

Às vezes, a piedade, e a esmola inferna!

Deste-me de beber da fonte eterna,

De onde a torrente dos remorsos mana.

Com a água que me deste (que contraste

De ti para a mulher de Samaria!)

A boca e o coração me envenenaste:

Maior do que o da sede, este tormento,

Esta ânsia singular, esta agonia

Que é de saudade e de arrependimento!

Um Beijo

Foste o beijo melhor da minha vida,

Ou talvez o pior... Glória e tormento,

Contigo à luz subi do firmamento,

Contigo fui pela infernal descida!

Morreste, e o meu desejo não te olvida:

Queimas-me o sangue, enches-me o pensamento,

E do teu gosto amargo me alimento,

E rolo-te na boca malferida.

Beijo extremo, meu prêmio e meu castigo,

Batismo e extrema-unção, naquele instante

Por que, feliz, eu não morri contigo?

Sinto-te o ardor, e o crepitar te escuto,

Beijo divino! e anseio, delirante,

Na perpétua saudade de um minuto...

Criação

Há no amor um momento de grandeza,

Que é de inconsciência e de êxtase bendito:

Os dois corpos são toda a Natureza,

As duas almas são todo o Infinito.

É um mistério de força e de surpresa!

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Estala o coração da terra, aflito;

Rasga-se em luz fecunda a esfera acesa,

E de todos os astros rompe um grito.

Deus transmite o seu hálito aos amantes:

Cada beijo é a sanção dos Sete Dias,

E a Gênese fulgura em cada abraço;

Porque, entre as duas bocas soluçantes,

Rola todo o Universo, em harmonias

E em glorificações, enchendo o espaço!

Maternidade

"O Senhor disse à mulher: Por que

fizeste isto? Eu multiplicarei os

teus trabalhos!"

(Gen., cap. III.)

Ventre mártir, a rútila visita

Do amor fecundo te arrancou do sono:

E irradias, lampejas como um trono

De animado marfim que à luz palpita!

Ergues-te, em esto de orgulhoso entono:

Fere-te enfim a maldição bendita!

Tens o viço da Terra, quando a agita,

Rico de orvalhos e de sóis, o outono.

Augusto, em gozo eterno, o teu suplício...

Feliz a tua dor propiciatória...

- Rasga-te, altar do torturante auspício,

E abra-se em flores tua alvura ebórea,

Ensangüentada pelo sacrifício,

Para a maternidade e para a glória!

Os Amores da Aranha

Com o veludo do ventre a palpitar hirsuto

E os oito olhos de brasa ardendo em febre estranha,

Vede-a: chega ao portal do intrincado reduto,

E na glória nupcial do sol se aquece e banha.

Moscas! podeis revoar, sem medo à sua sanha:

Mole e tonta de amor, pendente o palpo astuto,

E recolhido o anzol da mandíbula, a aranha

Ansiosa espera e atrai o amante de um minuto...

E ei-lo corre, ei-lo acode à festa e à morte! Um hino

Curto e louco, um momento, abala e inflama o fausto

Do aranhol de ouro e seda... E o aguilhão assassino

Da esposa satisfeita abate o noivo exausto,

Que cai, sentindo a um tempo, — invejável destino!

A tortura do espasmo e o gozo do holocausto.

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Os Amores da Abelha

Quando, em prônubo anseio, a abelha as asas solta

E escala o espaço, - ardendo, êxul do corcho céreo,

Louca, se precipita a sussurrante escolta

Dos noivos zonzos, voando ao nupcial mistério.

Em breve, sucumbindo, o enxame arqueja, e volta...

Mas o mais forte, um só, senhor do excelso império,

Segue a esquiva, e, em zunzum zeloso de revolta,

Entoa o epitalâmio e o cântico funéreo:

Toca-a, fecunda-a, e vence, e morre na vitória...

A esposa, livre, ao sol, no alto do firmamento,

Palra, e, rainha e mie, zumbe de orgulho e glória;

E, rodopiando, inerte, o suicida sublime,

Entre as bênçãos da luz e os hosanas do vento,

Rola, mártir feliz do delicioso crime.

Semper Impendent...

Se amas, se da velhice entras a porta escura,

Maldize o teu amor, que é um triste adeus à vida!

Porque no teu amor de velho se mistura

Ao enlevo de um noivo a angústia de um suicida.

Louco! vês entreabrir-se a cova, na doçura

Do aconchego nupcial que ao gozo te convida;

E, na incerteza atroz da carícia futura,

Cada afago te dói como uma despedida.

Sofres um estertor em cada abraço, um grito

Em cada beijo, em cada anseio uma saudade:

É um rolar, um ferver num inferno infinito!

No desesperador prazer do teu transporte,

Sentes a crispação da treva que te invade,

O doloroso amargo ante-sabor da morte...

O Oitavo Pecado

Vivendo para a morte, alegre da tristeza,

Temendo o fogo eterno e a danação sulfúrea,

Gelaste no cilício, em ascética fúria,

A alma ridente, o sangue em esto, a carne acesa.

Foste mártir e herói da própria natureza.

Intacto de ambição, de desejo ou de injúria,

Para ganhar o céu, venceste a ira, a luxúria,

A gula, a inveja, o orgulho, a preguiça e a avareza.

Mas não amaste! E, além do Inferno, um outro existe,

Onde é mais alto o choro e o horror dos renegados:

Ali, penando, tu, que o amor nunca sentiste,

Pagarás sem amor os dias dissipados!

Esqueceste o pecado oitavo: e era o mais triste,

Mortal, entre os mortais, de todos os pecados!

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Salutaris Porta

Para conter aquela imensa chama,

Os nossos corações eram pequenos:

Tivemos medo da paixão... E ao menos

Não vimos tanto céu mudado em lama!

O velário correu-se antes do drama.