Fui sempre tão mal-aventurado que nem tento acreditar por um momento na boa sorte.
CLARA
Isso não é natural num cavalheiro cristão.
LUÍS
O cavalheiro cristão está prestes a mourar.
CLARA
Oh!
LUÍS
O sol do Oriente aquece os corações, ao passo que o de Petrópolis esfria-os.
CLARA
Estude antes o fenômeno e não vá sacrificar a sua consciência. Mas, na realidade, tem sempre encontrado a derrota nas suas pelejas?
LUÍS
A derrota foi sempre a sorte das minhas armas. Será que elas sejam mal temperadas? Será que eu não as maneje bem? Não sei.
PEDRO ALVES
É talvez uma e outra coisa.
LUÍS
Também pode ser.
CLARA
Duvido.
PEDRO ALVES
Duvida?
CLARA
E sabe quais são as vantagens de seus vencedores?
LUÍS
Demais até.
CLARA
Procure alcançá-las.
LUÍS
Menos isso. Quando dois adversários se medem, as mais das vezes o vencedor e sempre aquele, que à elevada qualidade de tolo reúne uma sofrível dose de presunção. A esse, as palmas da vitória, a esse a boa fortuna da guerra: quer que o imite?
CLARA
Disse — as mais das vezes — confessa, pois, que há exceções.
LUÍS
Fora absurdo negá-las, mas declaro que nunca as encontrei.
CLARA
Não deve desesperar, porque a fortuna aparece quando menos se conta com ela.
LUÍS
Mas aparece às vezes tarde. Chega quando a porta está cerrada e tudo que nos cerca é silencioso e triste. Então a peregrina demorada entra como uma amiga consoladora, mas sem os entusiasmos do coração.
CLARA
Sabe o que o perde? É a fantasia.
LUÍS
A fantasia?
CLARA
Não lhe disse há pouco que o senhor via as coisas através de um vidro de cor? É o óculo da fantasia, óculo brilhante, mas mentiroso, que transtorna o aspecto do panorama social, e que faz vê-lo pior do que é, para dar-lhe um remédio melhor do que pode ser.
PEDRO ALVES
Bravo! Deixe-me, V. Exa., beijar-lhe a mão.
CLARA
Por quê?
PEDRO ALVES
Pela lição que acaba de dar ao Sr. Luís de Melo.
CLARA
Ah! por que o acusei de visionário? O nosso vizinho carece de quem lhe fale assim.
Perder-se-á se continuar a viver no mundo abstrato das suas teorias platônicas.
PEDRO ALVES
Ou por outra, e mais positivamente, V. Exa. mostrou-lhe que acabou o reinado das baladas e da pasmaceira para dar lugar ao império dos homens de juízo e dos espíritos sólidos.
LUÍS
V. Exa. toma então o partido que me é adverso?
CLARA
Eu não tomo partido nenhum.
LUÍS
Entretanto, abriu brecha aos assaltos do Sr. Pedro Alves, que se compraz em mostrar-se espírito sólido e homem de juízo.
PEDRO ALVES
E de muito juízo. Pensa que eu adoto o seu sistema de fantasia, e por assim dizer, de choradeira? Nada, o meu sistema é absolutamente oposto; emprego os meios bruscos por serem os que estão de acordo com o verdadeiro sentimento. Os da minha têmpera são assim.
LUÍS
E o caso é que são felizes.
PEDRO ALVES
Muito felizes. Temos boas armas e manejamo-las bem. Chame a isso toleima e presunção, pouco nos importa; é preciso que os vencidos tenham um desafogo.
CLARA
(a Luis de Melo)
O que diz a isto?
LUÍS
Digo que estou muito fora do meu século. O que fazer contra adversários que se contam em grande número, número infinito, a admitir a versão dos livros santos?
CLARA
Mas, realmente, não vejo que pudesse responder com vantagem.
LUÍS
E V. Exa. sanciona a teoria contrária?
CLARA
A castelã não sanciona, anima os lidadores.
LUÍS
Animação negativa para mim. V. Exa. dá-me licença?
CLARA
Onde vai?
LUÍS
Tenho uma pessoa que me espera em casa. V. Exa. janta às seis, o meu relógio marca cinco. Dá-me este primeiro quarto de hora?
CLARA
Com pesar, mas não quero tolhê-lo. Não falte.
LUÍS
Volto já.
CENA VI
CLARA, PEDRO ALVES
PEDRO ALVES
Estou contentíssimo.
CLARA
Por quê?
PEDRO ALVES
Porque lhe demos uma lição.
CLARA
Ora, não seja mau!
PEDRO ALVES
Mau! Eu sou bom até demais. Não vê como ele me provoca a cada instante?
CLARA
Mas, quer que lhe diga uma coisa? É preciso acabar com essas provocações contínuas.
PEDRO ALVES
Pela minha parte, nada há; sabe que sou sempre procurado na minha gruta.
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