Ora, não se toca impunemente no leão…
CLARA
Pois seja leão até a última, seja magnânimo.
PEDRO ALVES
Leão apaixonado e magnânimo? Se fosse por mim só, não duvidaria perdoar. Mas diante de V. Exa., por quem tenho presa a alma, é virtude superior às minhas forças. E, entretanto, V. Exa. obstina-se em achar-se razão.
CLARA
Nem sempre.
PEDRO ALVES
Mas vejamos, não é exigência minha, mas eu desejo, imploro, uma decisão definitiva da minha sorte. Quando se ama como eu amo, todo o paliativo é uma tortura que se não pode sofrer!
CLARA
Com que fogo se exprime! Que ardor, que entusiasmo!
PEDRO ALVES
É sempre assim. Zombeteira!
CLARA
Mas o que quer então?
PEDRO ALVES
Franqueza.
CLARA
Mesmo contra os seus interesses?
PEDRO ALVES
Mesmo… contra tudo.
CLARA
Reflita: prefere à dubiedade da situação, uma declaração franca que lhe vá destruir as suas mais queridas ilusões?
PEDRO ALVES
Prefiro isso a não saber se sou amado ou não.
CLARA
Admiro a sua força d’alma.
PEDRO ALVES
Eu sou o primeiro a admirar-me.
CLARA
Desesperou alguma vez da sorte?
PEDRO ALVES
Nunca.
CLARA
Pois continue a confiar nela.
PEDRO ALVES
Até quando?
CLARA
Até um dia.
PEDRO ALVES
Que nunca há de chegar.
CLARA
Que está… muito breve.
PEDRO ALVES
Oh! meu Deus!
CLARA
Admirou-se?
PEDRO ALVES
Assusto-me com a ideia da felicidade. Deixe-me beijar a sua mão?
CLARA
A minha mão vale bem dois meses de espera e receio; não vale?
PEDRO ALVES
(enfiado)
Vale.
CLARA
(sem reparar)
Pode beijá-la! É o penhor dos esponsais.
PEDRO ALVES
(consigo)
Fui longe demais! (alto, beijando a mão de Clara) Este é o mais belo dia de minha vida!
CENA VII
CLARA, PEDRO ALVES, LUÍS
LUÍS
(entrando)
Ah!…
PEDRO ALVES
Chegou a propósito.
CLARA
Dou-lhe parte do meu casamento com o Sr. Pedro Alves.
PEDRO ALVES
O mais breve possível.
LUÍS
Os meus parabéns a ambos.
CLARA
A resolução foi um pouco súbita, mas nem por isso deixa de ser refletida.
LUÍS
Súbita, decerto, porque eu não contava com uma semelhante declaração neste momento. Quando são os desposórios?
CLARA
Pelos fins do verão, não, meu amigo?
PEDRO ALVES
(com importância)
Sim, pelos fins do verão.
CLARA
Faz-nos a honra de ser uma das testemunhas?
PEDRO ALVES
Oh! isso é demais.
LUÍS
Desculpe-me, mas eu não posso. Vou fazer uma viagem.
CLARA
Até onde?
LUÍS
Pretendo abjurar em qualquer cidade mourisca e fazer depois a peregrinação da Meca. Preenchido este dever de um bom maometano irei entre as tribos do deserto procurar a exceção que não encontrei ainda no nosso clima cristão.
CLARA
Tão longe, meu Deus! Parece-me que trabalhará debalde.
LUÍS
Vou tentar.
PEDRO ALVES
Mas tenta um sacrifício.
LUÍS
Não faz mal.
PEDRO ALVES
(a Clara, baixo)
Está doido!
CLARA
Mas virá despedir-se de nós?
LUÍS
Sem dúvida. (baixo a Pedro Alves) Curvo-me ao vencedor, mas consola-me a ideia de que, contra as suas previsões, paga as despesas da guerra. (alto) V. Exa. dá-
me licença?
CLARA
Onde vai?
LUÍS
Retiro-me para casa.
CLARA
Não fica para jantar?
LUÍS
Vou aprontar a minha bagagem.
CLARA
Leva a lembrança dos amigos no fundo das malas, não?
LUÍS
Sim, minha senhora, ao lado de alguns volumes de Alphonse Karr.
SEGUNDA PARTE
Na Corte
(Uma sala em casa de Pedro Alves.)
CENA I
CLARA, PEDRO ALVES
PEDRO ALVES
Ora, não convém por modo algum que a mulher de um deputado ministerialista vá à partida de um membro da oposição. Em rigor, nada há de admirar nisso. Mas o que não dirá a imprensa governista! O que não dirão os meus colegas da maioria!
Está lendo?
CLARA
Estou folheando este álbum.
PEDRO ALVES
Nesse caso, repito-lhe que não convém…
CLARA
Não precisa, ouvi tudo.
PEDRO ALVES
(levantando-se)
Pois aí está; fique com a minha opinião.
CLARA
Prefiro a minha.
PEDRO ALVES
Prefere…
CLARA
Prefiro ir à partida do membro da oposição.
PEDRO ALVES
Isso não é possível. Oponho-me com todas as forças.
CLARA
Ora, veja o que é o hábito do parlamento! Opõe-se a mim, como se eu fosse um adversário político. Veja que não esta na câmara, e que eu sou mulher.
PEDRO ALVES
Mesmo por isso. Deve compreender os meus interesses e não querer que seja alvo dos tiros dos maldizentes. Já não lhe falo nos direitos que me estão confiados como marido…
CLARA
Se é tão aborrecido na câmara como é cá em casa, tenho pena do ministério e da maioria.
PEDRO ALVES
Clara!
CLARA
De que direitos me fala? Concedo-lhe todos quantos queira, menos o de me aborrecer; e privar-me de ir a esta partida, é aborrecer-me.
PEDRO ALVES
Falemos como amigos. Dizendo que desistas do teu intento, tenho dois motivos: um político e outro conjugal. Já te falei do primeiro.
CLARA
Vamos ao segundo.
PEDRO ALVES
O segundo é este. As nossas primeiras vinte e quatro horas de casamento, passaram para mim rápidas como um relâmpago. Sabes por quê? Porque a nossa lua-de-mel não durou mais que esse espaço. Supus que unindo-te a mim, deixasses um pouco a vida dos passeios, dos teatros, dos bailes. Enganei-me; nada mudaste em teus hábitos; eu posso dizer que não me casei para mim. Fui forçado a acompanhar-te por toda a parte, ainda que isso me custasse grande aborrecimento.
CLARA
E depois?
PEDRO ALVES
Depois, é que esperando ver-te cansada dessa vida, reparo com pesar que continuas na mesma e muito longe ainda de a deixar.
CLARA
Conclusão: devo romper com a sociedade e voltar a alongar as suas vinte e quatro horas de lua-de-mel, vivendo beatificamente ao lado um do outro, debaixo do teto conjugal…
PEDRO ALVES
Como dois pombos.
CLARA
Como dois pombos ridículos! Gosto de ouvi-lo com essas recriminações.
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