Clara sai) Ouça! Ouça!
CENA IV
LUÍS DE MELO, PEDRO ALVES
PEDRO ALVES
(só)
Fugiu! Não tarda ceder. Ah! o meu adversário!
LUÍS
D. Clara?
PEDRO ALVES
Foi para outra parte do jardim.
LUÍS
Bom. (vai sair)
PEDRO ALVES
Disse-me que o fizesse esperar; e eu estimo bem estarmos a sós porque tenho de lhe dizer algumas palavras.
LUÍS
Às ordens. Posso ser-lhe útil?
PEDRO ALVES
Útil a mim e a si. Eu gosto das situações claras e definidas. Quero poder dirigir a salvo e seguro o meu ataque. Se lhe falo deste modo é porque, simpatizando com as suas maneiras, desejo não trair a uma pessoa a quem me ligo por um vínculo secreto. Vamos ao caso: é preciso que me diga quais as suas intenções, qual o seu plano de guerra; assim, cada um pode atacar por seu lado a praça, e o triunfo será do que melhor tiver empregado os seus tiros.
LUÍS
A que vem essa belicosa parábola?
PEDRO ALVES
Não compreende.
LUÍS
Tenha a bondade de ser mais claro.
PEDRO ALVES
Mais claro ainda? Pois serei claríssimo: a viúva do coronel é uma praça sitiada.
LUÍS
Por quem?
PEDRO ALVES
Por mim, confesso. E afirmo que por nós ambos.
LUÍS
Informaram-no mal. Eu não faço a corte à viúva do coronel.
PEDRO ALVES
Creio em tudo quanto quiser, menos nisso.
LUÍS
A sua simpatia por mim vai até desmentir as minhas asserções?
PEDRO ALVES
Isso não é discutir. Deveras, não faz corte à nossa interessante vizinha?
LUÍS
Não, as minhas atenções para com ela não passam de uma retribuição a que, como homem delicado, não me poderia furtar.
PEDRO ALVES
Pois eu faço.
LUÍS
Seja-lhe para bem! Mas a que vem isso?
PEDRO ALVES
A coisa alguma. Desde que me afiança não ter a menor intenção oculta nas suas atenções, a explicação está dada. Quanto a mim, faço-lhe a corte e digo-o bem alto. Apresento-me candidato no seu coração e para isso mostro títulos valiosos.
Dirão que sou presumido; podem dizer o que quiser.
LUÍS
Desculpe a curiosidade: quais são esses títulos?
PEDRO ALVES
A posição que a fortuna me dá, um físico que pode-se chamar belo, uma coragem capaz de afrontar todos os muros e grades possíveis e imagináveis, e para coroar a obra uma discrição de pedreiro-livre.
LUÍS
Só?
PEDRO ALVES
Acha pouco?
LUÍS
Acho.
PEDRO ALVES
Não compreendo que haja precisão de mais títulos além destes.
LUÍS
Pois há. Essa posição, esse físico, essa coragem e essa discrição, são decerto apreciáveis, mas duvido que tenham valor diante de uma mulher de espírito.
PEDRO ALVES
Se a mulher de espírito for da sua opinião.
LUÍS
Sem dúvida alguma que há de ser.
PEDRO ALVES
Mas continue, quero ouvir o fim de seu discurso.
LUÍS
Onde fica no seu plano de guerra, já que aprecia este gênero de figura, onde fica, digo eu, o amor verdadeiro, a dedicação sincera, o respeito, filho de ambos, e que essa D. Clara sitiada deve inspirar?
PEDRO ALVES
A corda em que acaba de tocar está desafinada há muito tempo e não dá som. O
amor, o respeito, e a dedicação! Se o não conhecesse diria que o senhor acaba de chegar do outro mundo.
LUÍS
Com efeito, pertenço a um mundo que não é absolutamente o seu. Não vê que tenho um ar de quem não está em terra própria e fala com uma variedade da espécie?
PEDRO ALVES
Já sei; pertence à esfera dos sonhadores e dos visionários. Conheço boa soma de seus semelhantes que me tem dado bem boas horas de riso e de satisfação. É
uma tribo que se não acaba, pelo que vejo?
LUÍS
Ao que parece, não?
PEDRO ALVES
Mas é evidente que perecerá.
LUÍS
Não sei. Se eu quisesse concorrer ao bloqueio da praça em questão, era azada ocasião para julgarmos do esforço recíproco e vermos até que ponto a ascendência do elemento positivo exclui a influência do elemento ideal.
PEDRO ALVES
Pois experimente.
LUÍS
Não; disse-lhe já que respeito muito a viúva do coronel e estou longe de sentir por ela a paixão do amor.
PEDRO ALVES
Tanto melhor. Sempre é bom não ter pretendentes para combater. Ficamos amigos, não?
LUÍS
Decerto.
PEDRO ALVES
Se eu vencer o que dirá?
LUÍS
Direi que há certos casos em que com toda a satisfação se pode ser padrasto e direi que esse é o seu caso.
PEDRO ALVES
Oh! se a Clarinha não tiver outro padrasto senão eu…
CENA V
PEDRO ALVES, LUÍS, D. CLARA
CLARA
Estimo bem vê-los juntos.
PEDRO ALVES
Discutíamos.
LUÍS
Aqui tem o seu leque; está intacto.
CLARA
Meu Deus, que trabalho que foi tomar. Agradeço-lhe do íntimo. É uma prenda que tenho em grande conta; foi-me dado por minha irmã Matilde, em dia de anos meus. Mas tenha cuidado; não aumente tanto a lista das minhas obrigações; a dívida pode engrossar e eu não terei por fim com que solvê-la.
LUÍS
De que dívida me fala? A dívida aqui é minha, dívida perene, que eu mal amortizo por uma gratidão sem limite. Posso eu pagá-la nunca?
CLARA
Pagar o quê?
LUÍS
Pagar essas horas de felicidade calma que a sua graciosa urbanidade me dá e que constituem os meus fios de ouro no tecido da vida.
PEDRO ALVES
Reclamo a minha parte nessa ventura.
CLARA
Meu Deus, declaram-se em justa? Não vejo senão quebrarem lanças em meu favor. Cavalheiros, ânimo, a liça está aberta, e a castelã espera o reclamo do vencedor.
LUÍS
Oh! a castelã pode quebrar o encanto do vencedor desamparando a galeria e deixando-o só com as feridas abertas no combate.
CLARA
Tão pouca fé o anima?
LUÍS
Não é a fé das pessoas que me falta, mas a fé da fortuna.
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