Se eu fosse uma nulidade, nem alcançaria um diploma. Não acha?

 

LUÍS

Tem razão.

 

PEDRO ALVES

Por que não tenta a política?

 

LUÍS

Porque a política é uma vocação e quando não é vocação é uma especulação.

Acontece muitas vezes que, depois de ensaiar diversos caminhos para chegar ao futuro, depara-se finalmente com o da política para o qual convergem as aspirações íntimas. Comigo não se dá isso. Quando mesmo o encontrasse juncado de flores, passaria por ele para tomar outro mais modesto. Do contrário seria fazer política de especulação.

 

PEDRO ALVES

Pensa bem.

 

LUÍS

Prefiro a obscuridade ao remorso que me ficaria de representar um papel ridículo.

 

PEDRO ALVES

Gosto de ouvir falar assim. Pelo menos, é franco e vai logo dando o nome às coisas. Ora, depois de uma ausência de cinco anos parece que há vontade de passar algumas horas juntos, não? Fique para jantar conosco.

CENA IV

CLARA, PEDRO ALVES, LUÍS

PEDRO ALVES

Clara, aqui está um velho amigo que não vemos há cinco anos.

 

CLARA

Ah! O Sr. Luís de Melo!

 

LUÍS

Em pessoa, minha senhora.

 

CLARA

Seja muito bem-vindo! Causa-me uma surpresa agradável.

 

LUÍS

V. Exa. honra-me.

 

CLARA

Venha sentar-se. O que nos conta?

 

LUÍS

(conduzindo-a para uma cadeira)

Para contar tudo fora preciso um tempo interminável.

 

CLARA

Cinco anos de viagem!

 

LUÍS

Vi tudo quanto se pode ver nesse prazo. Diante de V. Exa. está um homem que acampou ao pé das pirâmides.

 

CLARA

Oh!

 

PEDRO ALVES

Veja isto!

 

CLARA

Contemplado pelos quarenta séculos!

 

PEDRO ALVES

E nós que o fazíamos a passear pelas capitais da Europa.

 

CLARA

É verdade, não supúnhamos outra coisa.

 

LUÍS

Fui comer o pão da vida errante dos meus camaradas árabes. Boa gente! Podem crer que deixei saudades de mim.

 

CLARA

Admira que entrasse no Rio de Janeiro com esse lúgubre vestuário da nossa prosaica civilização. Devia trazer calça larga, alfanje e burnous. Nem ao menos burnous! Aposto que foi Cádi?

 

LUÍS

Não, minha senhora; só os filhos de Islã têm direito a esse cargo.

 

CLARA

Está feito. Vejo que sacrificou cinco anos, mas salvou a sua consciência religiosa.

 

PEDRO ALVES

Teve saudades de cá?

 

LUÍS

À noite, na hora de repouso, lembrava-me dos amigos que deixara, e desta terra onde vi a luz. Lembrava-me do Clube, do teatro Lírico, de Petrópolis e de todas as nossas distrações. Mas vinha o dia, voltava-me eu à vida ativa, e tudo desvanecia-se como um sonho amargo.

 

PEDRO ALVES

Bem lhe disse eu que não fosse.

 

LUÍS

Por quê? Foi a ideia mais feliz da minha vida.

 

CLARA

Faz-me lembrar o justo de que fala o poeta de Olgiato, que entre rodas de navalhas diz estar em um leito de rosas.

 

LUÍS

São versos lindíssimos, mas sem aplicação ao caso atual. A minha viagem foi uma viagem de artista e não de peralvilho; observei com os olhos do espírito e da inteligência. Tanto basta para que fosse uma excursão de rosas.

 

CLARA

Vale então a pena perder cinco anos?

 

LUÍS

Vale.

 

PEDRO ALVES

Se não fosse o meu distrito sempre quisera ir ver essas coisas de perto.

 

CLARA

Mas que sacrifício! Como é possível trocar os conchegos do repouso e da quietação pelas aventuras de tão penosa viagem?

 

LUÍS

Se as coisas boas não se alcançassem à custa de um sacrifício, onde estaria o valor delas? O fruto maduro ao alcance da mão do bem-aventurado a quem as huris embalam, só existe no paraíso de Maomé.

 

CLARA

Vê-se que chega de tratar com os árabes?

 

LUÍS

Pela comparação? Dou-lhe outra mais ortodoxa: o fruto provado por Eva custou-lhe o sacrifício do paraíso terrestre.

 

CLARA

Enfim, ajunte exemplo sobre exemplo, citação sobre citação, e ainda assim não me fará sair dos meus cômodos.

 

LUÍS

O primeiro passo é difícil. Dado ele, apodera-se da gente um furor de viajar, que eu chamarei febre de locomoção.

 

CLARA

Que se apaga pela saciedade?

 

LUÍS

Pelo cansaço. E foi o que me aconteceu: parei de cansado. Volto a repousar com as recordações colhidas no espaço de cinco anos.

 

CLARA

Tanto melhor para nós.

 

LUÍS

V. Exa. honra-me.

 

CLARA

Já não há medo de que o pássaro abra de novo as asas.

 

PEDRO ALVES

Quem sabe?

 

LUÍS

Tem razão; dou por findo o meu capítulo de viagem.

 

PEDRO ALVES

O pior é não querer abrir agora o da política. A propósito: são horas de ir à câmara; há hoje uma votação a que não posso faltar.

 

LUÍS

Eu vou fazer uma visita na vizinhança.

 

PEDRO ALVES

À casa do comendador, não é? Clara, o Sr. Luís de Melo faz-nos a honra de jantar conosco.

 

CLARA

Ah! Quer ser completamente amável.

 

LUÍS

V. Exa.