Entretanto, Deus me livre de dar-lhe motivo de queixa, pode ir.

 

LUÍS

Não espero mais nada.

CENA III

PEDRO ALVES, CLARA

PEDRO ALVES

Este nosso vizinho tem uns ares de superior que me desagradam. Pensa que não compreendi a alusão da parasita e dos histriões? O que não me fazia conta era desrespeitar a presença de V. Exa., mas não faltam ocasiões para castigar um insolente.

 

CLARA

Não lhe acho razão para falar assim. O Sr. Luis de Melo é um moço de maneiras delicadas e está longe de ofender a quem quer que seja, muito menos a uma pessoa que eu considero…

 

PEDRO ALVES

Acha?

 

CLARA

Acho sim.

 

PEDRO ALVES

Pois eu não. São modos de ver. Tal seja o ponto de vista em que V. Exa. se coloca… Cá o meu olhar apanha-o em cheio e diz-me que ele merece bem uma lição.

 

CLARA

Que espírito belicoso é esse?

 

PEDRO ALVES

Este espírito belicoso é o ciúme. Eu sinto ter por concorrente a este vizinho que se antecipa a visitá-la, e a quem V. Exa. dá tanta atenção.

 

CLARA

Ciúme!

 

PEDRO ALVES

Ciúme, sim. O que me respondeu V. Exa. à pergunta que lhe fiz sobre o meu bilhete? Nada, absolutamente nada. Talvez nem o lesse; entretanto eu pintava-lhe nele o estado do meu coração, mostrava-lhe os sentimentos que me agitam, fazia-lhe uma autópsia, era uma autópsia, que eu lhe fazia de meu coração. Pobre coração! Tão mal pago dos seus extremos, e entretanto tão pertinaz em amar!

 

CLARA

Parece-me bem apaixonado. Devo considerar-me feliz por ter perturbado a quietação do seu espírito. Mas a sinceridade nem sempre é companheira da paixão.

 

PEDRO ALVES

Raro se aliam é verdade, mas desta vez é assim. A paixão que eu sinto é sincera, e pesa-me que meus avós não tivessem uma espada pra eu sobre ela jurar…

 

CLARA

Isso é mais uma arma de galantaria que um testemunho de verdade. Deixe antes que o tempo ponha em relevo os seus sentimentos.

 

PEDRO ALVES

O tempo! Há tanto que me diz isso! Entretanto continua o vulcão em meu peito e só pode ser apagado pelo orvalho do seu amor.

 

CLARA

Estamos em pleno outeiro. As suas palavras parecem um mote glosado em prosa.

Ah ! a sinceridade não está nessas frases gastas e ocas.

 

PEDRO ALVES

O meu bilhete, entretanto, é concebido em frases bem tocantes e simples.

 

CLARA

Com franqueza, eu não li o bilhete.

 

PEDRO ALVES

Deveras?

 

CLARA

Deveras.

 

PEDRO ALVES

(tomando o chapéu)

Com licença.

 

CLARA

Onde vai? Não compreende que quando digo que não li o seu bilhete é porque quero ouvir da sua própria boca as palavras que nele se continham?

 

PEDRO ALVES

Como? Será por isso?

 

CLARA

Não acredita?

 

PEDRO ALVES

É capricho de moça bonita e nada mais. Capricho sem exemplo.

 

CLARA

Dizia-me então?…

 

PEDRO ALVES

Dizia-lhe que, com o espírito vacilante como baixel prestes a soçobrar, eu lhe escrevia à luz do relâmpago que me fuzila n’alma aclarando as trevas que uma desgraçada paixão aí me deixa. Pedia-lhe a luz dos seus olhos sedutores para servir de guia na vida e poder encontrar sem perigo o porto de salvamento. Tal é no seu espírito a segunda edição de minha carta. As cores que nela empreguei são a fiel tradução do que sentia e sinto. Está pensativa?

 

CLARA

Penso em que, se me fala verdade, a sua paixão é rara e nova para estes tempos.

 

PEDRO ALVES

Rara e muito rara; pensa que eu sou lá desses que procuram vencer pelas palavras melífluas e falsas? Sou rude, mas sincero.

 

CLARA

Apelemos para o tempo.

 

PEDRO ALVES

É um juiz tardio. Quando a sua sentença chegar, eu estarei no túmulo e será tarde.

 

CLARA

Vem agora com ideias fúnebres!

 

PEDRO ALVES

Eu não apelo para o tempo. O meu juiz está em face de mim, e eu quero já beijar antecipadamente a mão que há de lavrar a minha sentença de absolvição. (quer beijar-lhe a mão.