Dizem até as crônicas que entre alguns versos que outrora compusera como quase todos os rapazes, o que não quer dizer que fosse poeta, figurava esta quadrinha conceituosa e denunciadora dos seus instintos filópedes (relevem-me o neologismo) :

Se queres dar-me esperança,

Se queres que eu tenha fé,

Mostra-me, por caridade,

O teu pequenino pé.

Com a desconhecida da barca niteroiense não era preciso recitar esta quadra suplicante; ela estendia o pé com ares de quem queria que André Soares lho visse, e falo assim porque no fim de dez minutos deixou a moça de olhar para o teto, para o mar, para o chão, e entrou a olhar unicamente para ele.

André Soares estava na ante-sala da morte; nem por isso deixou de sustentar o olhar da moça, dividindo a sua atenção entre o seu rosto e o seu pé. Refletia ele que ir para a sepultura com uma doce recordação da vida não era absolutamente prejudicial à alma. Aqueles minutos em que ainda respirava, aproveitava-os ele na contemplação da moça, e tanto os aproveitou que quando deu acordo de si chegara a barca a S. Domingos.

André Soares fez um gesto de despeito; mas não teve tempo de resolver alguma coisa, porque a moça levantou-se para sair lançando-lhe um último olhar, e ele maquinalmente deixou-se ir atrás dela e saiu da barca.

Estava adiado o suicídio, pelo menos por algumas horas, porque o nosso André Soares quando reparou que ainda se não tinha matado, murmurou estas palavras consigo:

— Na volta.

E foi seguindo atrás da bela desconhecida. Bela é talvez pouco; André Soares achou-a fascinadora, quando na ponte uma rajada de vento levantou um pouco o véu da moça. Ao mesmo tempo, tendo deixado ir a moça adiante, André Soares pôde apreciar os pezinhos e a graça com que ela os movia — nem tão apressada como as francesas, nem tão lenta como as nossas patrícias, mas um meio-termo que permitia ser acompanhada sem desconfiança dos estranhos.

No fim de duzentos passos, André Soares estava namorado quase de todo, sobretudo porque a desconhecida duas ou três vezes voltara o rosto e passara ao infeliz um novo cabo de reboque. Cabo de reboque é uma metáfora que o leitor compreenderá bem e a leitora ainda melhor. Em duas palavras, quando a desconhecida entrou em uma casa, André Soares estava definitivamente resolvido a tentar a aventura, e a adiar, para tempos melhores, o suicídio.


II


Logo nesse dia, voltou o nosso herói para casa tão contente como se houvera tirado a sorte grande. O mar contava um hóspede menos; mas a fortuna coroara mais um de seus escolhidos.

André estava fora de si; amava, não era mal recebido o seu amor, cujo objeto, de mais a mais, era um anjo, um nume, uma criatura mais do céu que da terra, como ele mesmo diria em verso, se ainda cultivasse a poesia.

Os mesmos gestos complacentes que a moça fizera antes de entrar na casa em S. Domingos, fizera-os depois de sair, e na barca e na cidade, até chegar à Rua dos Inválidos, onde morava.

Nunca mais terrível devia ser ao nosso André Soares a idéia dos cento e vinte mil-réis mensais, nem mais saudosa a idéia dos duzentos. A verdade, porém, é que não pensou em nada disso; estava mordido deveras. A moça, depois de entrar em casa, não chegou à janela como ele esperava; mas em todo o caso dera-lhe todos os sinais de que não era indiferente a seus afetos, e esta certeza fez do desgraçado daquela manhã o mais venturoso de todos os mortais.

Há de parecer singular a mais de uma leitora que, não lhe tendo dito a desconhecida onde morava, André Soares adivinhasse que era justamente na casa da Rua dos Inválidos onde a vira entrar.

Mas a explicação é facílima.

André Soares pertencia à classe ingênua dos namorados que fazem indagações no armarinho da esquina ou na padaria ao pé. Depois de esperar um razoável tempo a ver se a bela dama aparecia à janela, André dirigiu os passos a uma padaria que ficava perto, e fez as interrogações precisas a um caixeiro que ali encontrou. Veio a saber que a moça era viúva, que se chamava Cláudia, que vivia com um irmão empregado em Niterói, onde tinha alguns parentes.

André Soares arriscou algumas perguntas a respeito da interessante viúva e soube que era exemplar, notícia que o informador lhe deu com muitos comentários a respeito das vantagens da virtude e o apêndice de alguns casos de pessoas que ele conhecera e que desonraram as barbas dos seus avós.

Além destas notícias soube ainda André Soares que a moça possuía cerca de vinte apólices e uma preta velha, que eram toda a riqueza do defunto marido.

— É um bom princípio para quem casar com ela, acrescentou o caixeiro com ar malicioso.

— Decerto, disse André Soares brincando com a corrente do relógio e fitando um olhar perscrutador no caixeiro, que brincava com a tampa de uma barrica vazia.

— Não é muito, mas é um bom princípio, repetiu este.

— E há já algum farejador? arriscou o namorado.

— Nenhum.

— Admira!

— Há muita gente que passa e olha, mas ela não se importa com ninguém.

André Soares estava mais contente do que se lhe viessem trazer o decreto da nomeação malograda. Tinha a moça todas as condições que ele podia exigir naquelas circunstâncias. Sobretudo achava-se ele livre de concorrentes. Se fosse três meses antes...

— Três meses antes, disse o informante, andou aqui um moço que não era mal aceito; mas desapareceu.

André Soares saiu dali contentíssimo.

— Foi um anjo que o céu me enviou, pensava ele, para me salvar da morte e ao mesmo tempo trazer-me a felicidade. E digam lá que não há Providência ou sorte, ou o que quer que seja que vela pelos homens! A pequena é uma formosura, e o pé é o mais gentil que até hoje tenho visto. Que pé! Não é um pé, é um milagre. E os olhos? e o andar?

Fez o namorado assim o inventário das belezas da formosa Cláudia, foi jantar alegremente e logo de tarde deu o seu passeio pela Rua dos Inválidos, tão embebido em olhar para a janela onde estava a moça que não reparou no caixeiro da padaria que se arrimara à porta para assistir ao romance.


III


Era claro que a viúva Cláudia gostava do rapaz; trocou com ele um longo e expressivo olhar e dignou-se responder com am sorriso ao sorriso que André Soares lhe enviou. Quando ele de todo desapareceu, Cláudia entrou e foi tocar piano. Não escolheu um trecho alegre adequado à situação; preferiu uma melodia triste que parecia dizer com a sua alma, ou ao menos que ela queria que se parecesse com ela. O certo é que, voltando daí a pouco André Soares e ouvindo-a tocar coisas tão melancólicas, sentiu acordar-lhe dentro d’alma um som poético da sua adolescência, e logo nesta noite expectorou uma elegia tão triste que não trazia um verso certo.

A primeira carta não se fez demorar, e a resposta foi imediatamente às mãos do namorado. Não era carta apaixonada a da moça, mas André Soares compreendeu que ela usara de certa reserva que lhe parecia necessária. Replicou o pretendente, treplicou a dama, e os autos de coração foram-se avolumando progressivamente, até que André Soares entendeu que era conveniente freqüentar a casa e aproveitou uma apresentação que lhe ofereceram.

A primeira vez que se falaram os dois foi visível para o sr. Justino Magalhães, irmão de Cláudia, que eles se amavam.

Justino Magalhães tinha um programa na vida: agradar aos pretendentes da irmã, a fim de poder continuar a viver economicamente, isto é, a ter casa e mesa sem despender um real. Fiel a estas idéias, tratou de captar a boa vontade de André Soares, que por sua parte se atirou de corpo e alma aos braços do futuro cunhado.

Cláudia era ainda mais bela de perto que de longe; o namorado verificou logo essa diferença quando começou a freqüentar a casa. A moça era sobretudo de uma meiguice incomparável. André Soares ficava encantado quando falavam algum tempo a sós, e ela podia expandir-se com ele.

— Mas por que motivo me distinguiu logo naquele dia na barca? perguntara André uma noite à moça.

— Ora, por quê? Porque o céu nos destinou um para o outro.

— E se soubesse!...

— O quê?

— Não lhe digo.

— Receia?...

— Nada; tenho vergonha. Naquele fatal dia...

— Fatal...