repetiu a moça com um ar de doce ressentimento.

— Perdão; fatal por outro motivo, que eu só mais tarde lhe explicarei... Sim, há anjos que velam por nós.

— Há! suspirou a moça.

A conversa foi interrompida por Justino, que se aproximou para dizer que no dia seguinte havia um bonito espetáculo no teatro S. Luís.

André Soares recebera justamente nesse dia o ordenado; era ocasião de fazer um convite.

— Tenho justamente camarote para amanhã, disse ele; se quiserem dar-me a honra de aceitar...

— Mas... ia ela dizendo.
— Com muito gosto, atalhou Justino. O camarote foi aceito.

Mas a curiosidade da moça trabalhava. Que mistério seria esse de que lhe falara André Soares? Insistiu com ele dali a algum tempo, e no dia seguinte, e alguns dias depois, até que o namorado francamente confessou que um motivo grave o levara a cometer um crime.

— Um crime?

— A minha própria morte. A moça ficou séria.

— Alguma paixão, disse ela com tristeza.

— Oh! não!

— Não compreendo...

— Que quer? disse ele. Nem só de pão vive o homem; achava-me numa situação pecuniária desagradável e... mas para que falarmos de coisas mesquinhas?...

André Soares calou-se e entrou a refletir; pareceu-lhe que fora expansivo demais e que acabava de dar à namorada a idéia de pinga. Igualmente lhe pareceu que um pinga só é poético nos livros, mas que na vida real toda a gente o despreza. E refletiu, enfim, que, apresentando-se candidato à mão da viúva, cumpria-lhe mostrar que não ia só atrás das suas apólices...

O resultado de todas estas reflexões produziu esta observação:

— Felizmente, lá vai esse tempo: foi uma crise que passou. Agora...

— Não desejo saber isso, disse a moça; por que não falaremos só do nosso coração?

— É apenas um parênteses necessário, disse André Soares, é-me preciso explicar-lhe a razão por que até hoje não pedi oficialmente a sua mão.

A moça fez um gesto. André continuou:

— Não lhe pedi a sua mão porque espero obter um novo lugar que me coloque em situação melhor do que atualmente me acho. Não é ela má! lembro-lhe, porém, que sou solteiro; casado, seria insuficiente. Peço-lhe desculpa de entrar nestes pormenores; é uma senhora de juízo; e há de aceitá-los como cabidos e necessários.

— Nem cabidos nem necessários, disse a moça; eu pouco tenho, mas tenho alguma coisa...

— Perdão...

— Ouça...

— Desejo observar...

— Ouça. O seu pouco com o meu pouco farão o necessário para a nossa existência.

Duas criaturas que se amam são naturalmente econômicas das coisas da vida. André Soares teve ímpeto de cair aos pés da moça e ir dali com ela para a igreja. Conteve-se do primeiro movimento.

O segundo era impossível.

— O que me acaba de dizer é a expressão elevada e nobre de seu coração, disse ele. Eu, porém, não tenho o direito de falar a mesma linguagem; a sociedade exige mais de mim. Peço-lhe só alguns dias de espera.

André Soares pedira efetivamente um novo emprego, e desta vez se não havia mais probabilidade que da outra, havia mais esperanças no fácil espírito do pretendente. Justino soube, pela irmã, das razões dadas por André Soares, e achou que eram de cavalheiro.

— É um rapaz muito simpático, disse Justino; é um homem como há poucos.

Esta opinião de Justino não devia produzir impressão no ânimo de Cláudia, porque ele não tinha outra a respeito de todos os pretendentes da irmã.

Todavia entusiasmou-a. E a razão é clara.

Cláudia gostava realmente do rapaz; e o seu coração não se lembrava ou não reparava na opinião uniforme de Justino a respeito de outras pessoas que a pretendessem mas a quem ela nunca dera atenção.

Justino, porém, insistiu na opinião que formara de André Soares, e tão cavalheiro o achou que não teve dúvida de lhe pedir vinte mil-réis no dia seguinte.

Não era a primeira vez que Justino recorria à bolsa de André Soares, e porque isso, e outras necessidades que agora lhe acresciam, aumentavam as despesas de André Soares, ia este sendo obrigado a recorrer à bolsa de outros, e a criar assim uma dívida externa assaz vasta.

E tão triste é esta situação que eu não tenho ânimo de continuar o capítulo. Veremos no capítulo seguinte o que aconteceu ao nosso herói.


IV


São passados cinco meses depois da conversa em que André Soares expôs à sua amada qual era a situação de sua vida e quais os seus projetos.

Os dias foram passando sem vir o emprego; André Soares passava já uma vida assaz triste e lastimosa. A moça por sua parte, conquanto desejasse repetir-lhe o que uma vez lhe dissera, não se atrevia a fazê-lo a fim de conservar a reserva que a sua posição lhe impunha.

Redobrava entretanto de carinhos e afeto com o mísero namorado, o que de algum modo lhe suavizava as penas do coração.

— Que anjo! dizia ele todas as noites ao retirar-se para casa. Que anjo!

Se o emprego não vinha, em compensação chegavam as dívidas, e o passivo de André Soares ia tomando um aspecto assustador.

Ao mesmo tempo o amor do pobre rapaz, se era possível, crescia mais, o que estava longe de ser um lenitivo naquela situação. A idéia de não poder casar com a bela viúva, ou de casar nas condições em que ele se achava, atormentava o espírito do pobre moço.

Imagine-se o que sofreria o coração do pobre rapaz e calcule-se em que circunstâncias, e com que cara ouviu ele um dia, ao passar pela padaria de que falei no segundo capítulo, as seguintes palavras do caixeiro a um vizinho:

— Este é uma das duas amarras da viuvinha.

André ficou sem pinga de sangue. Naturalmente ia voltar o rosto, mas a tempo deteve o movimento e continuou a andar até entrar na casa da viúva Cláudia.

Parou, entretanto, no corredor antes de subir as escadas. E refletiu:

— Que será aquilo? Iludir-me-á esta mulher? Serei eu a fábula da rua? Terei eu um rival mais venturoso?

Estas e outras interrogações fê-las o nosso herói com o desespero na alma e no rosto. Sentiu depois uma dor aguda no peito e teve uma vertigem.

O desgraçado padecia deveras, amava deveras. Enfim subiu.

Cláudia recebeu-o com o modo do costume, o qual modo havia já vinte dias que não era o mesmo modo anterior.