Você é um doido!...

André Soares concordou facilmente com tudo o que lhe dizia Justino, e prometeu que nessa mesma noite iá iria à casa deles. Recusou, entretanto, dizer de onde lhe viera a revelação a que aludira na carta.

Justino conversou largo tempo com o futuro cunhado, de quem se despediu para ir embora.

— Já!

— Já! Vou pagar uma dívida. Vejamos se me chega o dinheiro.

E meteu a mão no bolso do paletó com a confiança de um homem que traz a carteira. Errada confiança, porque a carteira ficara em casa.

— Não seja essa dúvida, disse André Soares; eu empresto-lhe o que for preciso, se não orçar por muito!

— Trinta e cinco mil e quinhentos, disse Justino.

— Tome lá, acudiu André Soares entregando-lhe trinta e dois mil-réis. Não tenho mais.

— Não faz mal. Para tapar a boca ao credor, cuido que é bastante.

Justino saiu alegremente depois de muitas amabilidades ao futuro cunhado que não menos alegre ficou.

A cena que precede deve ter explicação.

Cláudia não mostrou a carta de André Soares ao irmão. Viu-a este sobre uma mesa, perguntou à viúva o que era, e esta disse então um tanto zangada que eram ciúmes do noivo.

— Posso ler?

— Lê.

Leu a carta Justino e ofereceu-se para ir entender-se com André Soares, coisa que a viúva nem aprovou nem reprovou; limitou-se a encolher os ombros.

André não era homem que descobrisse na missão de Justino a necessidade de trinta e cinco mil-réis, e a dívida, que podia existir, mas que, em todo caso, não ia ser paga pareceu-lhe tão autêntica, que ia ser paga pareceu-lhe tão autêntica, que iria pedir emprestado se não tivesse dinheiro, para favorecer o amigo.

Ao Chegar à casa da noiva ia André Soares todo trêmulo de comoção. A moça, entretanto, pareceu-lhe ainda mais fria que da última vez.

— Mas então não perdoa? perguntou ele.

Atribuiu isso ao ressentimento que lhe deixara a carta.

— O quê?

— A carta.

Cláudia levantou os ombros.

— Foi uma imprudência, confesso, disse ele; mas que quer? Eu amo-a. Nada. [1]

— Aproveito a ocasião para lhe dizer que daqui a um mês será o nosso casamento, disse André Soares, se acaso a ele se não opõe.

Cláudia ficou um pouco surpreendida com a notícia, continuou entretanto a ficar calada. André Soares saiu vendendo azeite às canadas.

— Há alguma coisa, por força, pensava ele, mas eu hei de descobrir tudo!


V


André Soares começou então uma vida de pesquisas e de cuidados, cuidados e pesquisas tais que o obrigaram a ir faltando à repartição, faltando-lhe igualmente a paz e o sono. Fazia ronda de tarde e de noite, passava horas e horas em casa da noiva sem todavia alcançar nada.

Uma vez apenas reparou que, ouvindo bater cinco horas, a moça interrompera a conversa para ir à janela. Ficou aflito na cadeira em que se achava, receoso e desejoso de ir também àquela. Afinal foi, mas não viu nada, porque a moça saiu logo.

Nesta atribulada vida andava André Soares, quando, num domingo, entrando em casa de Cláudia, deu com os olhos num sujeito da sua mesma idade, alto, bonito, vestido regularmente e muito respeitoso para com a interessante viúva.

Justino apresentou os dois estranhos um ao outro, donde veio André Soares a saber que o outro chamava-se Horácio.

Eu creio que a leitora é perspicaz e que já está a desconfiar de que este Horácio é o mesmo moço que o caixeiro da padaria dissera a André Soares ter andado há algum tempo a namorar a viúva, e não ser mal aceito dela.

Não o soube logo André Soares; mas a simples presença de um estranho, as maneiras com que tratava a moça, e a benevolência e gosto com que esta o ouvia e lhe respondia, tudo isso era razão para que o pobre namorado recebesse logo um imenso golpe.

As torturas por que passou nessa tarde foram indescritíveis.

No dia seguinte ainda foi pior. Oito dias depois tinha André Soares toda a certeza de que a bela passara com armas e bagagens ao campo inimigo.

Algumas coisas fortes lhe disse, a que ela respondeu com o silêncio; foi para casa e escreveu uma longa, indignada, lacrimejada e fulminante carta, a que a moça não respondeu.

Seu desespero já não tinha limites.

— Por que fatal acaso encontrei eu aquela mulher? perguntava ele a passear sozinho na sua sala. Parecia então que nada pior me podia acontecer. Erro! Havia pior; essa víbora que zombou de mim.

E logo:

— Mas eu hei de tirar vingança! Não se dirá que fui ludibriado por ambos ou antes por todos três, porque o Justino também contribuiu para iludir-me. Venha ainda alguma vez pedir-me alguma coisa...

Aqui claudicava a perspicácia do namorado.

Justino nada mais lhe pedira desde o dia dos trinta e dois mil-réis.

Era então a carteira de Horácio que se incumbira de corrigir as lacunas que às vezes havia na sua. Justino o mais que fazia era pedir uma ou outra vez algum charuto ao André Soares. Nada mais.

André Soares entendeu que lhe cumpria pedir satisfações a Horácio. Refletiu depois e preferiu ocultar o que entre ele e ela havia; não dispensou, porém, brigar com o rival. Para isto bastava um pretexto.

Mas que pretexto seria?

— Ora, adeus! pensou ele consigo. A ocasião me dará o pretexto.

Logo no dia seguinte entrando numa casa de charutos, encontrou Horácio, a quem ligeiramente cumprimentou.

Horácio pareceu não fazer caso dele. André Soares foi às nuvens.

Depois de um silêncio:

— Vai hoje à Rua dos Inválidos?

— Sim, senhor, respondeu secamente Horácio.

— Há muito tempo já que conhece aquela família?

Horácio olhou para ele sem dignar-se responder.

— Não me ouviu, creio eu.

— Estou a recordar-me do tempo, disse Horácio depois de alguns instantes. Creio que conheço aquela família desde o tempo em que a casa não era freqüentada por tolos. André Soares ficou vermelho como um lacre; todavia era preciso responder.

— Então não há muito tempo, disse ele; creio que entraram juntos lá os tolos e o senhor. Horácio foi sacudido com esta resposta. As palavras trocadas em voz alta chamaram a atenção do dono da casa. A tragédia estava iminente.

Horácio tinha dois caminhos. O primeiro era ir-se embora.

O segundo era ir-lhe às orelhas.