Não é à toa que esta coletânea é aberta com um poema de LORD Byron, que, se não foi um autor de destaque do gênero gótico, embora um dos expoentes e mesmo um autor-símbolo do romantismo europeu, tem sua história profundamente ligada a um momento crucial do gótico romântico – por causa de certa temporada às margens do Lago de Genebra, na Suíça, junto com Mary Shelley e John Polidori, em 1816, a qual muito iremos mencionar.
Nesta coletânea, você vai encontrar, depois de cada obra, um comentário (AUTOR E OBRA) sobre a importância literária do que leu, seus descendentes e linhagem, as relações do autor com a literatura, a influência que exerceu e os elementos de composição literária mais destacados usados por ele. Além disso, há depoimentos de bons leitores das histórias de terror, falando de sua experiência de leitura. São eles Pedro Bandeira, Daniel Piza e Luiz Raul Machado. Há também um ensaio – O Terror Diz: “Até Breve!” –, com interessantes curiosidades e reflexões sobre o gênero gótico.
Enfim, ninguém vai sair imune aos calafrios de Góticos: Vampiros, múmias, fantasmas e outros astros da literatura de terror. Bem-vindo a este estranho reino, no qual o antigo e o moderno tramam histórias sobre o medo, antros do mal, passagens entre a vida e a morte e espelhos cujos reflexos por vezes são imagens inconfessáveis de nós mesmos.
Se esbarrar com alguma monstruosidade, não grite alto demais, ou outra assombração pode também despertar.
Vire a página por sua conta e risco.

Transformação
Mary Shelley
Tradução: Domingos Demasi
Imediatamente, esta minha carcaça foi retorcida
Por terrível agonia,
O que me forçou a iniciar minha história
E, logo depois, ela me libertou.
Desde então, a uma hora incerta,
A agonia retorna;
E até minha medonha história ser contada
Este coração dentro de mim queima.
“Velho marinheiro”, de Coleridge
Ouvi dizer que, quando ocorre qualquer aventura estranha, sobrenatural e necromântica a um ser humano, esse ser, embora desejoso de ocultar o fato, sente-se, em certos períodos, assolado como por um terremoto intelectual e é forçado a desnudar para outro as profundezas de seu espírito. Sou testemunha da verdade disso. Jurei solenemente a mim mesmo nunca revelar a humanos os horrores aos quais eu, certa vez, por excesso de orgulho demoníaco, entreguei-me. O homem santo que ouviu minha confissão e me reconciliou com a Igreja está morto. Ninguém sabe que, certa vez...
Por que não deveria ser desse modo? Por que contar uma história de ímpia tentação da Providência e humilhação de alma subjugada? Por quê? Responde-me, tu que és versado nos segredos da natureza humana! Eu sei apenas que assim é; e, apesar de forte determinação – de um orgulho que me domina tenazmente –, de vergonha, e mesmo de medo, de parecer odioso à minha espécie, eu tenho de falar.
Gênova! minha orgulhosa cidade natal! Contemplo as ondas azuis do Mar Mediterrâneo – tu te lembras de mim, em minha infância, quando teus rochedos e promontórios, teu céu brilhante e alegres vinhedos eram o meu mundo? Época feliz, quando, para o coração jovem, o universo confinado, que deixa, pela sua própria limitação, espaço livre para a imaginação, cativa nossas energias físicas, e único período em nossa vida em que inocência e prazer estão unidos! Entretanto, quem pode olhar para trás, para a infância, e não se lembrar de suas dores e seus angustiantes temores? Eu nasci com o mais imperioso, arrogante e indomável espírito, com o qual nunca um mortal foi agraciado. Cedia apenas diante do meu pai; e ele, generoso e nobre, mas caprichoso e tirânico, de imediato nutriu e reprimiu a selvagem impetuosidade do meu caráter, tornando a obediência necessária, mas sem inspirar respeito pelos motivos que guiavam suas ordens. Ser um homem livre, independente ou, mais bem-posto, insolente e dominador era a esperança e a súplica de meu coração rebelde.
Meu pai tinha um amigo, um rico nobre genovês, o qual em meio a turbulências políticas foi subitamente sentenciado ao desterro, e sua propriedade, confiscada. O marquês Torella foi sozinho para o exílio. Assim como meu pai, ele era viúvo: tinha uma filha, a quase infante Juliet, que foi deixada sob a guarda de meu pai. Eu certamente teria sido um rude senhor para a adorável moça, a não ser que fosse forçado pela minha posição a me tornar seu protetor. Uma variedade de incidentes pueris tenderam todos a um ponto: levaram Juliet a me ver como um refúgio seguro; e eu, nela, alguém que deveria perecer através da doce sensibilidade de sua natureza tão rudemente punida, e não pela minha proteção de guardião. Crescemos juntos. A rosa desabrochada em maio não era mais perfumada do que essa querida moça. Uma irradiação de beleza foi disseminada pelo seu rosto. Sua forma, seu andar, sua voz... Meu coração soluça ainda agora ao pensar em tudo de calmo, amável, amoroso e puro que foi conservado como relíquia naquela morada celestial.
Quando eu tinha onze anos de idade e Juliet, oito, um primo meu, muito mais velho que nós dois – ele nos parecia um adulto –, se interessou pela minha colega de brincadeiras; chamou-a de noiva e pediu que se casasse com ele. Ela se recusou, e ele insistiu, puxando-a para si contra a vontade dela. Com semblante e emoções de um louco, joguei-me em cima dele, lutei para sacar sua espada, pendurei-me em seu pescoço com a feroz determinação de o estrangular; ele foi obrigado a pedir ajuda para se livrar de mim. Naquela noite, levei Juliet à capela de nossa casa: eu a fiz tocar nas relíquias sagradas, atormentei seu coração de criança e profanei seus lábios infantis com o juramento de que ela seria minha e somente minha.
Bem, esses dias se foram. Torella voltou poucos anos depois e tornou-se mais rico e mais próspero do que nunca. Quando eu tinha dezessete anos, meu pai morreu. Ele fora da magnificência à prodigalidade; Torella alegrou-se com o fato de que minha menoridade possibilitasse uma oportunidade de recompor minha fortuna. Juliet e eu havíamos ficado noivos diante do leito de morte de meu pai – Torella seria um segundo pai para mim.
Eu desejava ver o mundo e fui favorecido. Fui a Florença, Roma, Nápoles; dali viajei para Toulon e, finalmente, cheguei ao que, havia muito, era o destino de meus desejos, Paris. Na ocasião, havia louca agitação em Paris. O pobre rei Carlos VI, num momento são, em outro louco, num momento um monarca, em outro um escravo abjeto, era o próprio arremedo do gênero humano. A rainha, o delfim, o duque de Borgonha, alternativamente amigos e inimigos, num momento se encontrando em pródigos festins, em outro derramando sangue numa rivalidade, estavam cegos para a miséria de seu país e para os perigos que o ameaçavam.
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