Verso e Reverso
VERSO E REVERSO
José de Alencar
COMÉDIA EM DOIS ATOS
Representada pela primeira vez no Teatro do Ginásio, do Rio de Janeiro, em 28 de outubro de 1857
Uma noite vi-a no Ginásio; representava-se uma comédia um pouco livre.
Veio-me o desejo de fazê-la sorrir sem obrigá-la a corar. Conservei algum tempo essa impressão fugitiva; um dia ela correu aos bicos da pena, e cristalizou-se.
Escrevi a minha primeira comédia, O Rio de Janeiro [Verso e Reverso; logo depois O Demônio Familiar, e ultimamente O Crédito que deve representar-se breve.
Se algum dia pois eu for um autor dramático deverei unicamente àquela boa inspiração; a glória e os aplausos que o público, de generoso, quiser dar a essas pobres produções de minha inteligência, lhe pertencem.
A flor não se abriria se o raio de sol não a aquecesse e animasse.
J. DE ALENCAR]
PERSONAGENS
ATO PRIMEIRO
ERNESTO, [estudante de São Paulo].
TEIXEIRA, [capitalista tio de Ernesto].
AUGUSTO, [zangão da praça].
CUSTÓDIO, [empregado aposentado].
PEREIRA, poeta conhecido de].
HENRIQUE, [moço elegante].
FILIPE, [cambista de loterias].
JÚLIA, [filha de Teixeira].
BRAGA, [caixeiro de loja].
D. LUÍSA, [viúva de idade].
D. MARIANA, (parenta de Teixeira].
Um caixeiro de loja; um menino que vende fósforos; uma menina de realejo.
NOTA
A cena é na cidade do Rio de Janeiro e contemporânea.
O primeiro quadro passa-se em uma loja da Rua do Ouvidor nos fins de novembro. O segundo na casa de Teixeira nas Laranjeiras, [em princípio de março].
Urna loja da Rua do Ouvidor, [montada com luxo e no gosto francês].
CENA PRIMEIRA
ERNESTO, BRAGA, depois UM MENINO que vende fósforos.
ERNESTO (entrando de um salto) - Apre! É insuportável! Não se pode viver em semelhante cidade; está um homem sujeito a ser empurrado por todos esses meus senhores, e esmagado a cada momento por quanto carro, carroça, carreta ou carrinho anda nestas ruas. Com efeito é uma família... Desde o ônibus, o Noé dos veículos, até o coupé aristocrático e o tílburi plebeu!
BRAGA (dobrando as fazendas) - É porque o senhor ainda não está habituado.
O MENINO ([entrando e] dirigindo-se a ERNESTO) - Fósforos! Fósforos! Inalteráveis e superiores! ... (A BRAGA) Fósforos Sr. Braga.
ERNESTO - Deixe-me, menino!
O MENINO - Excelentes fósforos de cera a vintém!
ERNESTO (a BRAGA) - Oh! ue maçada! Deixe-me! (O MENINO sai.) Esta gente toma-me naturalmente por algum acendedor de lampiões; entendem que eu vim ao Rio de Janeiro unicamente para comprar fósforos. Já não me admira que haja aqui tantos incêndios. (Senta-se junto do balcão; uma pausa.) Como as coisas mudam vistas de perto! Quando estava em São Paulo o meu sonho dourado era ver o Rio de Janeiro, esse paraíso terrestre, essa maravilha de luxo, de riqueza e de elegância! Depois de três anos de esperanças consigo enfim realizar o meu desejo: dão-se as férias, embarco, chego e sofro uma das mais tristes decepções da minha vida. Há oito dias apenas que estou na corte e já tenho saudades de São Paulo. (Ergue-se.)
BRAGA - O Sr. não escolhe alguma coisa? Presentes para festas, o que há de mais delicado;
perfumarias...
ERNESTO [voltando-lhe as costas] - Obrigado!
CENA II
Os mesmos, FILIPE
FILIPE ([entrando] a ERNESTO) - Vinte contos, meu caro senhor! Anda amanhã a roda!... Vinte contos!
ERNESTO - Agradeço; não estou disposto.
BRAGA - Oh! Sr. Filipe!
FILIPE - Quer um bilhete, um meio ou um quarto? Vigésimos... Também temos.
ERNESTO (passeando) - Nada; não quero nada.
FILIPE - Bom número este; premiado três vezes! Mas se prefere este...
ERNESTO - Já lhe disse que não preciso dos seus bilhetes.
FILIPE - Pois enjeita? A sorte grande? Olhe não se arrependa!
ERNESTO - A sorte grande que eu desejo é ver-me livre de sua pessoa!
FILIPE (baixo a BRAGA) - Malcriado!
BRAGA (baixo a FILIPE) - É um provinciano! (FILIPE sai.)
ERNESTO - Enfim! Estou livre deste! Que terra!... É uma perseguição constante. (Passeia.)
CENA III
ERNESTO, BRAGA, AUGUSTO
AUGUSTO [entrando] - Oh! (examinando ERNESTO) Será algum acionista?.. Vejamos! Tratemos de entabular relações! ERNESTO (tira o relógio) - Já duas horas! Uma manhã inteiramente perdida.
AUGUSTO (cumprimentando) - O Sr. faz-me o obséquio de dizer que horas são?
ERNESTO - Como?
AUGUSTO - Que horas tem no seu relógio?
ERNESTO - Ah! desculpe; está parado. (Baixo a BRAGA) É o que faltava!... servir de torre de igreja aqui ao Sr.
AUGUSTO (a BRAGA) - Decididamente é acionista! Que diz? Tem-me ares de lavrador; são pelo menos vinte ações. Justamente as que me faltam para completar as cem que vendi. A dez mil-réis de prêmio... (Corre atrás de um homem que passa no fundo da loja.)
Olá sio!... Aquelas trinta não quer vender?... Dou-lhe sete!...
ERNESTO (a BRAGA) - Que extravagante! Vê-se cada figura neste Rio de Janeiro! (Senta-se e tira um charuto.) Ora deixe-me experimentar um dos tais fósforos de cera. (Acende o charuto.)
BRAGA - Aí vem o homem outra vez.
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