Mas que queres? Encontrei no Rio de Janeiro uma coisa que eu não conhecia senão de nome - o crédito; hoje que experimentei os seus efeitos não posso deixar de confessar que é uma instituição maravilhosa.

HENRIQUE - Vale mais do que dinheiro!

ERNESTO - Decerto; é a ele que devo ter comprado o que precisava, sem mesmo passar pelo incômodo de pagar. Mas agora vou retirar-me para São Paulo, e não desejava que viessem incomodar meu tio, além de que seria desairoso para mim partir sem ter saldado essas contas.

HENRIQUE - Tens razão; um homem honesto pode demorar por necessidade o pagamento de uma dívida; mas não deve fugir de seu credor.

ERNESTO - Quis a princípio falar a meu tio, mas tive vergonha de tocar nisso; resolvi-me recorrer a ti.

HENRIQUE - Em quanto importam essas dívidas?

ERNESTO - Não chegam a cem mil-réis.

HENRIQUE - Ora! uma bagatela. [Abre a carteira] Aqui tens.

ERNESTO - Obrigado, Henrique, não fazes idéia do serviço que me prestas! Vou passar-te um recibo ou um vale...

HENRIQUE - Que lembrança, Ernesto! Não sou negociante; tiro-te de um pequeno embaraço; quando puderes me pagarás. Não há necessidade de papel e tinta em negócios de amizade.

ERNESTO - A tua confiança ainda mais me penhora. Entretanto mesmo para tranqüilidade minha desejava...

HENRIQUE - Não falemos mais nisso. Quando embarcas?

ERNESTO - Hoje; daqui a duas horas.

HENRIQUE - Pois se não nos virmos mais, conta que aqui tens um amigo.

ERNESTO - Eu te escreverei.

HENRIQUE - Se é por simples atenção, não tomes esse incômodo; escreve-me quando precisares de qualquer coisa.

ERNESTO - Ora, graças a ti, estou livre de uma grande inquietação!... Mas quero confessar-te uma injustiça que cometi para contigo, e de que me acuso.

HENRIQUE - Como assim?

ERNESTO - Quando vi os moços aqui da corte, com seu ar de pouco caso, julguei que não passavam de espíritos levianos! Hoje reconheço que sob essa aparência frívola, há merecimento real e muita nobreza de caráter. Tu és um exemplo. A princípio, desculpa, mas tomei-te por um sujeito que especulava sobre a amizade para a emissão de bilhetes de benefício e de poesias inéditas!

HENRIQUE (rindo-se) - E mais é que às vezes assim é necessário! Não podemos recusar certos pedidos!.

CENA V

Os mesmos, CUSTÓDIO

CUSTÓDIO (na porta) - Muito bons dias tenham todos nesta casa.

ERNESTO [a HENRIQUE] - Oh! Aí vem o nosso compadre como seu eterno que há de novo. (A CUSTÓDIO) Bom dia, Sr. Custódio, como vai?

CUSTÓDIO [desce] - Bem, obrigado! Vai-se arrastando a vida enquanto Deus é servido.

[Aperta-lhe a mão] Que há de novo?

ERNESTO [rindo] - Tudo é velho; ali estão os jornais, mas não trazem coisas de importância.

CUSTÓDIO - Conforme o costume. (Voltando a HENRIQUE) Tem passado bem? Que há...

HENRIQUE - Nada, Sr. Custódio, nada absolutamente.

(CUSTÓDIO vai sentar-se à mesa e lê os jornais).

ERNESTO (a HENRIQUE) - Nas províncias não se encontra essa casta de bípedes implumes, que vivem absorvidos com a política, esperando antes de morrer ver realizada uma espécie de governo que sonharam e que se parece com a república de Platão!... Eis o verdadeiro tipo da raça desses fósseis da Independência e do Sete de Abril. Cinqüenta anos de idade, empregado aposentado, bengala, caixa de rapé e gravata branca. Não tem outra ocupação mais do que ler os jornais, perguntar o que há de novo e queixar-se da imoralidade da época.

HENRIQUE [rindo] - Serviam outrora para parceiro de gamão nas boticas.

CUSTÓDIO (lendo) - Oh! Cá temos um artiguinho da oposição!... Começa! Já era tempo! Com este ministério não sei onde iremos parar.

ERNESTO (a HENRIQUE) - Agora ei-lo ferrado com o tal artigo! Bom homem! Quando eu queria conversar com Júlia, nós o chamávamos sempre. Assim éramos três, e ao mesmo tempo estávamos sós; porque, agarrando-se a um jornal, não ouve, fica cego. Podia apertar a mão de minha prima que ele não percebia!

HENRIQUE - Esta habilidade não sabia que eles tinham.

ERNESTO - Pois recomendo-te!

HENRIQUE - Fica ao meu cuidado. Adeus; dá cá um abraço; até a volta.

ERNESTO [abraça] - Adeus, Henrique; lembra-te dos amigos, (Quer segui-lo.)

HENRIQUE - Não te incomodes. [Sai].

CENA VI

ERNESTO, CUSTÓDIO, TEIXEIRA, JÚLIA

CUSTÓDIO [erguendo-se com o jornal na mão] - Isto é desaforo!... Como é que um governo se anima a praticar semelhantes coisas na capital do império?

[TEIXEIRA e JÚLIA têm entrado enquanto fala CUSTÓDIO].

TEIXEIRA - Que é isto, compadre! Por que está tão zangado? [A ERNESTO] Ernesto, como passaste a noite?

ERNESTO - Bem, meu tio.

CUSTÓDIO [mostrando o jornal] - Pois não leu? Criou-se uma nova repartição! Um bom modo de arranjar os afilhados! No meu tempo havia menos empregados e trabalhava-se mais. O Real Erário tinha dezessete, e fazia-se o serviço perfeitamente!

[JÚLIA senta-se na conversadeira].

TEIXEIRA - Que quer, compadre? É o progresso.

CUSTÓDIO - O progresso da imoralidade.

(TEIXEIRA toma um jornal sobre a mesa; CUSTÓDIO continua a ler; ERNESTO aproxima-se de JÚLIA.)

ERNESTO - Um minuto!... Foi um minuto com privilégio de hora!

JÚLIA [sorrindo] - Acha que me demorei muito?

ERNESTO - Inda pergunta! E agora aí está meu tio, não teremos um momento de liberdade!

JÚLIA - Sente-se! Podemos conversar.

ERNESTO [sentando-se] - Preferia que conversássemos sem testemunhas!

JÚLIA - Tenha paciência, não é culpa minha.

ERNESTO - É de quem é, Júlia? Se não se demorasse! [Entra AUGUSTO].

CENA VII

Os mesmos, AUGUSTO

AUGUSTO [entrando] - Com licença!

TEIXEIRA - Oh! Sr. Augusto!

AUGUSTO [a JÚLIA] - Minha senhora! [a ERNESTO e CUSTÓDIO] Meus Srs.! [A TEIXEIRA] Como passou de ontem, Sr. Teixeira? Peço desculpa da hora imprópria... [ERNESTO levanta- se e passa ao outro lado].

TEIXEIRA - Não tem de que. Estou sempre às suas ordens.

AUGUSTO - Como me disse que talvez não fosse hoje à cidade...

TEIXEIRA - Sim; por causa de meu sobrinho que embarca às onze horas.

AUGUSTO - Assentei de passar por aqui, para saber o que decide sobre aquelas cem ações. Talvez hoje tenham subido, mas em todo o caso, não é bom fiar. Se quer o meu conselho - Estrada de Ferro - Estrada de Ferro - e largue o mais.