Fizemos o sacrifício do bom número de limões que esprememos em profundas taças − vulgo, copos de canada − e, com água de açúcar, oferecemos as devidas libações ao gênio do lugar.
Infelizmente o sacrifício não foi de todo incruento. Muitas hecatombes de mirmidões caíram no holocausto, e lhe deram um cheiro e sabor que não sei se agradou à divindade, mas que enjoou terrivelmente aos sacerdotes.
Saímos a visitar o nosso bom amigo, o velho D., a honra e alegria do Ribatejo. Já ele sabia da nossa chegada, e vinha no caminho para nos abraçar.
Fomos dar, juntos, uma volta pela terra.
É das povoações mais bonitas de Portugal, o Cartaxo, asseada, alegre; parece o bairro suburbano de uma cidade.
Não há aqui monumentos, não há aqui história antiga; a terra é nova, e a sua prosperidade e crescimento datam de trinta ou quarenta anos, desde que seu vinho começou a ter fama. Já descaída do que foi pela estagnação daquele comércio, ainda é, contudo, a melhor coisa da Borda-d’Água.
Não tem história antiga, disse; mas tem-na moderna e importantíssima.
Que memórias aqui não ficaram da guerra peninsular! Que espantosas borracheiras aqui não tomaram os mais famosos generais, os mais distintos militares da nossa antiga e fiel aliada, que ainda então, ao menos, nos bebia o vinho!
Hoje nem isso!... Hoje bebe a jacobina zurrapa de Bordéus e as acerbas limonadas de Borgonha. Quem tal diria da conservativa Albion! Como pode uma leal goela britânica, rascada pelos ácidos anárquicos daquelas vinagretas francesas, entoar devidamente o God save the King em um toast nacional! Como, sem Porto ou Madeira, sem Lisboa, sem Cartaxo, ousa um súdito britânico erguer a voz, naquela harmoniosa desafinação insular que lhe é própria e que faz parte do seu respeitável caráter nacional − faz; não se riam: o inglês não canta senão quando bebe... aliás, quando está bebido, Nisi potus ad arma ruisse. Inverta: Nisi potus in cantum prorumpisse... E pois, como há de ele assim bebido erguer a voz naquele sublime e tremendo hino popular !
Bebei, bebei bem zurrapa francesa, meus amigos ingleses; bebei, bebei a peso de ouro, essas limonadas dos burgraves e margraves de Alemanha; chamai-lhe, para vos iludir, chamai-lhe hoc, chamai-lhe hic, chamai-lhe o hic haec hoc todo, se vos dá gosto... que em poucos anos veremos o estado de acetato a que há de ficar reduzido o vosso caráter nacional.
Ó gente cega a quem Deus quer perder! Pois não vedes que não sois nada sem nós, que sem o nosso álcool, donde vos vinha espírito, ciência, valor, ides cair infalivelmente na antiga e preguiçosa rudeza saxônia!
Dessas traidoras praias de França donde vos vai hoje o veneno corrosivo da vossa índole e da vossa força, não tardará que também vos chegue outro Guilherme bastardo que vos conquiste e vos castigue, que vos faça arrepender, mais tarde, do criminoso erro que hoje cometeis, ó insulares sem fé, em abandonar a nossa aliança. A nossa aliança, sim, a nossa poderosa aliança, sem a qual não sois nada.
O que é um inglês sem Porto ou Madeira... sem Carcavelos ou Cartaxo?
Que se inspirasse Shakespeare com Laffitte, Milton com Château-Margaux − o chanceler Bacon que se diluísse no melhor Borgonha... e veríamos os acídulos versinhos, os destemperados raciocininhos que faziam. Com todas as suas dietas, Newton nunca se lembrou de beber Johannisberg: Byron antes beberia gim, antes água do Tâmisa, ou do Pamiso, do que essas escorreduras das áreas de Bordéus.
Tirai-lhe o Porto aos vossos almirantes, e ninguém mais teme que torneis a ter outro Nelson. Entra nos planos do Príncipe de Joinville fazer-vos beber da sua zurrapa; são tantos pontos de partido que lhe dais no seu jogo.
É M. Guizot quem perde a Inglaterra com sua aliança; e também perde o Cartaxo. Por isso eu já não quero nada com os doutrinários.
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Há doze anos tornou o Cartaxo a figurar conspicuamente na história de Portugal. Aqui, nas longas e terríveis lutas da última guerra de sucessão, esteve muito tempo o quartel-general do Marquês de Saldanha.
Alguns ditirambos se fizeram; alguns ecos das antigas canções báquicas do tempo da guerra peninsular ainda acordaram ao som dos hinos constitucionais.
Mas o sistema liberal, tirada a época das eleições, não é grande coisa para a indústria vinhateira, dizem. Eu não o creio, porém, e tenho minhas boas razões, que ficam para outra vez.
[1]. É fácil de ver que o interlocutor deste diálogo conhecia esse curioso personagem da história do Condestável, não pelas crônicas, mas pelo drama que tem o seu nome. (N.A.)
Capítulo VIII
Saída do Cartaxo. − A charneca. Perigo iminente em que o A. se acha de dar em poeta e fazer versos. − Última revista do imperador D. Pedro ao exército liberal. – Batalha de Almoster. − Waterloo. − Declara o A. solenemente que não é filósofo e chega à ponte da Asseca.
Eram dadas cinco horas da tarde, a calma declinava; montamos a cavalo, e cortamos por entre os viçosos pâmpanos que são a glória e a beleza do Cartaxo; as mulinhas tinham refrescado e tomado ânimo; breve, nos achamos em plena charneca.
Bela e vasta planície! Desafogada dos raios do sol, como ela se desenha aí no horizonte tão suavemente! Que delicioso aroma selvagem que exalam estas plantas, acres e tenazes de vida, que a cobrem, e que resistem verdes e viçosas a um sol português de julho!
A doçura que mete na alma a vista refrigerante de uma jovem seara do Ribatejo nos primeiros dias de abril, ondulando lascivamente com a brisa temperada da primavera − a amenidade bucólica de um campo minhoto de milho, à hora da rega, por meados de agosto, a ver-se-lhe pular os caules com a água que lhe anda por pé, e à roda as carvalheiras classicamente desposadas com a vide coberta de racimos pretos −, são ambos esses quadros de uma poesia tão graciosa e cheia de mimo, que nunca a dei por bem traduzida nos melhores versos de Teócrito ou de Virgílio, nas melhores prosas de Gessner ou de Rodrigues Lobo.
A majestade sombria e solene de um bosque antigo e copado, o silêncio e escuridão de suas moitas mais fechadas, o abrigo solitário de suas clareiras, tudo é grandioso, sublime, inspirador de elevados pensamentos.
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